14:39‘O que será que vem?…’

por Vilmar Farias

Fui na minha mãe na quinta-feira 16/1. Conversa vai, conversa vem, perguntei-lhe como estava se sentindo com a proximidade do aniversário. Uma pausa, segundos de silêncio. Pensativa, ela disparou: “O que será que vem?…”

Mãe de seis filhos. Viúva aos 48 anos, com cinco filhos ainda em casa. Uma vida dedicada aos trabalhos domésticos. Os filhos cresceram, saíram de casa, e o tempo se estendeu vazio.  

Prestes a completar 90 anos, filhos, netos e bisnetos compartilham com alegria esse momento. No entanto, compreendo o sentimento de solidão e o tom da angústia na reflexão de minha mãe: “O que será que vem?…”. 

Certo autor já disse que fazer aniversário é um “desfazimento” do tempo. “Por isso, um ritual mais alegre: acender uma vela bem grande, simbolizando os anos que virão”. 

Minha mãe é uma mulher tranquila. Daquele tipo, assim, de não ter boca pra nada. Escutar é a sua maior virtude. Na minha adolescência, gostava de ficar na cozinha conversando com ela, ou, melhor, falando para ela.  Mas prestava atenção em tudo o que ela dizia. Era a fonte que dissipava as minhas dúvidas em relação ao mundo vivido por um garoto de 14 anos de idade. Ainda hoje, no alto dos seus 89 anos, já com algum prejuízo cognitivo, mas lúcida, gosto de conversar com ela, embora muitas vezes lhe venha à consciência os dias repetitivos, sem nada mais a edificar. Então, depressiva, passa a reclamar. Mas eu a entendo. Para ela, os dias são todos iguais. 

Voltei para casa pensando no que será que vem depois… De origem católica, Glacy virou kardecista praticante, intuitiva, e desenvolveu sua mediunidade com a prática da caridade. Faço esta observação porque, em razão de suas crenças, achava que ela tinha bem resolvida a questão do início, a pacificação da alma ancorada na certeza de um porvir redimido.     

Olhei para minha pequena estante e visualizei a capa de um livro: “Se eu Pudesse Viver Minha Vida Novamente”, de Rubem Alves. Ao folhear o volume, me deparei com o poema “Instantes”, de autoria discutível de Jorge Luis Borges/Nadine Staier. Não vou transcrever a poesia, mas me permiti pinçar meia dúzia de linhas que identifiquei ao modo de vida de minha mãe: “[…] Eu sou uma dessas pessoas que viveu sensata e produtivamente cada minuto da vida. Claro que tive momentos de alegria. Mas, se pudesse voltar a viver, trataria de ter somente bons momentos. Porque, se não sabem, disso é feita a vida, só de momentos […]”.  

Quantos momentos cabem em noventa anos? Se a vida de minha mãe fosse para as telas do cinema, a representação poderia ser classificada por algum crítico como uma sequência de momentos “monocórdicos”. Eis que a tristeza, as ausências, os medos são sentimentos que interiorizam dores vividas no silêncio. E a vida de minha mãe teve muitos desses momentos, entrecortados, felizmente, por muitos momentos de alegria. 

Encerro este texto com as palavras de Hokusai, pintor japonês (1760-1849), escritas depois dos 70 anos: “Com certeza, quando tiver 80 anos, terei realizado mais progressos; aos 90, penetrarei no mistério das coisas…”.

Esta é uma homenagem a uma vida dedicada à família, seu paraíso, à minha mãe, Glacy Farias, que completará 90 anos no dia 23 de janeiro. Agradeço a Rubem Alves pela ajuda.

2 ideias sobre “‘O que será que vem?…’

  1. swissblue

    Uma bela homenagem à sua mãe. Você é realmente afortunado por tê-la ao seu lado, lúcida e altiva – uma verdadeira dádiva. Parabéns pelo aniversário dela e que venham muitos mais anos de felicidade. Gostei muito do que li e parabenizo pelo conto

  2. Edson

    Dr. Vilmar.

    Belíssima e tocante homenagem.
    Também tive a ventura de conviver com a minha mãe até os 96 anos.
    Sem dúvida isso é um privilégio.

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