9:20CORONGA – Um diário da peste*

por Marcos Barrero

11 de novembro de 2020  16hs26

Frequento mais velório do que enterro. Ainda não fui ao meu. Espero faltar. Não por mim – pelo sacrifício de alguns vivos. Não sei porque prefiro um ao outro. Assunto tão sedutor não me sugeriu ainda uma pensata. O velório talvez seja mais suportável. As pessoas contritas vão e vêm, fazem trejeitos e fingimentos  ante a face pálida do defunto. Aos olhos do chegado emergem, crescendo, os cabelos em desalinho, a tez esverdeada, o queixo flácido amarrado à gaze, o nariz do morto, como em Antônio Carlos Villaça. Ou numa cena de Pedro Nava. Como aguentar o tranco da indesejada? Ninguém, vivinho, fica cara a cara com a morte por muito tempo. Ninguém faz plantão diante dos círios pingando cera quente, das flores murchas e das faixas enviadas pela firma. Os solidários batem em retirada como se não estivessem passado por ali e jamais visto o que viram. Escapam pelos cantos, pelos fundos, para a rua.

Nos velórios antigos e domésticos, a cozinha era parada obrigatória. Vozerio, comilança, beberagem, mãos espertas em partes vivas e carnudas.  A indesejada convocava os “veloristas consumados”, como disse Manuel Bandeira num texto de Crônicas da Província do Brasil. O bêbado de festa, falando alto; o parente distante, retardatário, compensando as agruras da viagem em uivos e gemidos; os inimigos imiscuídos na aglomeração, a outra, os outros filhos, a tia de sombrinha, o tio do pavê, o vizinho com a gravata do Mickey – essa gente também aparecia. As carpideiras vagueavam silenciosas em torno do caixão, ora derramadas nas cadeiras, ora ao pé do ouvido. Este e aquele, e quem mais, a chusma acabava mesmo no disse que disse da cozinha, no gole do cafezinho e na mastigação da bolacha Maria. As coisas mais fundas, as crises, a histeria, os desmaios eram cenas reservadas pra beira do túmulo, ao pé do padre e da pá do coveiro.

O irrevogável flerte com a morte, esse fascínio pela cerimônia do velório, me empurrou para uma longa expedição bibliográfica. Ainda lá pelos anos 1970, ouvi que existia um livro chamado Velórios. Muitas bocas sopraram a novidade. Atiçaram-me bibliófilos como Erich Werner Gemeinder; pesquisadores como José Ramos Tinhorão; e alfarrabistas de alta quilometragem de estante, como Líbano Calil e José Licurgo Alencar Bezerra – todos, aliás, hoje defuntos. Existia então um livro chamado Velórios, publicado em 1936. Quase morri de curiosidade. Mórbida, claro. O autor era um escritor improvável: Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898-1969) saiu de Minas Gerais para o Rio de Janeiro e  dirigiu a lendária Revista do Brasil . Depois, caiu nos braços do ditador Vargas. Foi encarregado da defesa do patrimônio histórico nacional. Empregou ali até Mário de Andrade, à época defenestrado em São Paulo. Morreu atado às atividades do ramo e nunca mais escreveu nem publicou nada. Entrou para a literatura brasileira com um livrinho feito de oito contos e título arranjado por Manuel Bandeira.

Saí atrás do Velórios pelos sebos das ruas e da vida. Houve época de grande entusiasmo, períodos em que visitava vários alfarrábios no mesmo dia. Eu não estava só. Éramos um magote de doidos. Tinhorão, Sinésio, Lima, Erich. Às vezes, vinha também Edgard Carone, à cata de jornais velhos, que amarrava com cordinhas e empilhava na sua sala da Fefelete na USP. Almoçávamos juntos, em algum quilo do centro, tomávamos um cafezinho no Floresta do Copan e caíamos no mundo do papel velho e da poeira. ‘Pesquisador sério tem que engolir pó, revirar jornais, revistas e livros velhos”, pregava Tinhorão.  Ninguém ali se referia aos sebos pelo nome comercial, e, sim, pelo glorioso nome do dono. Íamos, então, ao Calil, Licurgo, Brandão, Aristóteles, Messias, Seu Olinto, o Farah, o luso Seu Luis. Cada um buscava a pepita de seu interesse. Velórios não me saía da cabeça. Alguns livreiros me aconselhavam a desistir. Soube que Rodrigo Melo Franco de Andrade havia bancado a edição e encomendado uma tiragem de apenas 200 exemplares.

Décadas assim. Um dia, e não me lembro quando nem onde, puxei uma lombadinha surrada de uma estante. Estava lá o Velórios em papel jornal. Desbotado, miudinho, machucadinho, mas o Velórios. Graficamente tão paupérrimo como História de João Crispim, de Enéas Ferraz (Livraria Editora Schetino, rua Sachet, nº 18, Rio de Janeiro). Um roman à clef sobre Lima Barreto, de quem Enéas foi amigo. Saíram apenas 100 exemplares em 1922 e nunca mais foi publicado. Edição tão miserável como Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector – editado pela gráfica do grupo A Noite em 1943. Clarice, à época, trabalhava na Agência Nacional, da mesma casa – negociou e pagou a edição. Meu volume de Clarice veio com carimbo de uma escola de Pirassununga. Por certo, descartaram o futuro clássico pra dar lugar a livro novo na biblioteca, quem sabe Meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos, ou Milho pra galinha, Mariquinha, de Marisa Raja Gabaglia. Velórios não me custou muito, recordo. Meti o livro na bolsa e só retirei em casa, à noite, em segurança.

Encarei poucos enterros. Um deles foi de meu amigo Benevenuto Santa Cruz, o Bené, o Professor – fundador da Livraria Duas Cidades. Ex-frei dominicano, formado na França, nasceu num engenho alagoano. Foi amigo de João Cabral de Melo Neto, Murilo Mendes, Boris Schnaiderman, compadre de Antônio Cândido, entre dezenas de iluminados. O fradinho redondo e travesso Antônio Carlos Vilaça traçou belas linhas pra evocá-lo. Baixinho, magro, curvado, o Professor fumava muito. Usava uma piteira. Tossia e tossia, uma tosse de velho. Usava um lenço no pescoço, protegendo-se do frio – até no calor. Me chamava pra sua mesa, sob uma escada, nos fundos da livraria, e falava de livros, autores, e me mostrava catálogos de editoras estrangeiras, e me dava aulas como se estivesse batendo um papo à toa. Diga-se que a universidade nunca me serviu: aprendi em botecos, livrarias e no futebol (como Camus, que foi goleiro na Argélia).

O enterro foi no mausoléu da família Mello e Souza. O amigo do peito Antonio Candido fez questão da homenagem. Éramos poucos numa tarde fria de julho de 1997, quase noite no cemitério São Paulo, em Pinheiros O coveiro, de macacão escuro, estava enterrado no buraco até a cintura. Batia a pá na borda do caixote de massa, limpava os restos de cimento e retomava o reboque. Indiferente, ausente, involuntário autor da trilha sonora da cerimônia do adeus. De repente, colocou a última pá de cimento verde na parede de tijolos e nos separou pra sempre do Professor. Antonio Candido então tirou uma pequena chave do bolsinho da frente da calça e entregou ao coveiro. E o coveiro deu três voltas na fechadura de uma portinha gradeada e escura.

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.