por Miguel Sanches Neto
Durante anos tentei me encontrar com Dalton Trevisan (1925-2024), de quem havia lido os principais livros. Leitor devoto é sinônimo de chato. Eu percorria as ruas de Curitiba tentando identificar o vampiro, que para mim era o principal morador da cidade.
Contratei uma vez um pedreiro idoso que havia trabalhado na Fábrica de Vidros Trevisan, do pai do autor.
– O seu Dalton era um chato – ele me disse. Era uma alma irmã, portanto.
Mas foi minha amizade com Deonísio da Silva que abriu as portas da convivência com ele. Todas as vezes que o Deonísio ia a Curitiba, nós três nos encontrávamos. Depois comecei a escrever uma série de artigos sobre as coletâneas do vampirinho, que me recomendou como colunista para a Gazeta do Povo. E assim nos tornamos amigos, ao ponto de ele me ligar todos os dias, para pedir as coisas mais estapafúrdias.
Como caminhava pelo Passeio Público, odiava o canto metálico de certa araponga. Então pediu para eu encaminhar com pseudônimo uma reclamação à prefeitura para retirar a araponga do viveiro das aves canoras. Fiz isso e mais uma infinidade de tarefas irrelevantes, próprias de um secretário a soldo. Publiquei os caderninhos dele, conversei com editores em nome do mestre, revisei seus livros – tenho aqui em casa cartas e os originais de 234 – etc., enquanto recebia lições de escrita. Ou seja, fui bem remunerado.
– Não use a expressão ‘via de regra’, quem tem regras é mulher – ele me disse.
Toda semana, tomávamos café na Rua XV, com um ou outro convidado. Ele lia meus textos e opinava. Assim nossa amizade se tornou antiga, embora fosse recente. Até o dia em que saiu uma matéria sobre seus hábitos no Correio Brasiliense e ele me acusou de ter dado as informações sobre como o vampiro vive, o que come e como se reproduz.
E me riscou do rol de amigos, fazendo de tudo para me prejudicar nas editoras e nos meios de comunicação em que eu trabalhava. Fez uma campanha difamatória contra mim. Reclamei para Wilson Martins, companheiro de geração e intelectual que sempre elogiou Dalton no início da carreira e também depois, sendo o principal responsável pela divulgação da obra do curitibano. Há mais de 20 anos os dois amigos não se falavam.
– Um dia o Dalton briga com você e você nem sabe por qual motivo – ele me disse –. Bem-vindo ao grupo dos inimigos dele.
E foi assim que o contista começou a me tratar. Como inimigo.
Depois disso, nós nos encontramos em um ou outro lugar, ele sempre simpático, mas pouco expansivo. Continuei escrevendo sobre os livros dele, mas não éramos mais próximos.
Dalton proibiu a editora de encaminhar os lançamentos dele para mim. Comprei os volumes e escrevi, elogiando o estilista primoroso. Um dia, tentei entender em que momento nossa amizade tão intensa se quebrou. Cheguei a um episódio. Eu falava da tara de um amigo dele, que era incansável na conquista de mulheres socialmente mais frágeis, e chamei o conquistador de velho.
– Pô, Sanches. Tá pensando que só você é jovem? Puta merda.
Eu tinha ofendido o mestre, merecia ser excluído. Mas ele esperou a matéria sobre a vida dele no jornal para me acusar com um fato grave. Depois, espalhou que eu estava escrevendo uma biografia dele. Deixei que isso passasse como verdade, confesso.
E um dia pensei que já pagara o preço, então ia escrever um livro a partir de Dalton Trevisan. Não sobre ele. E como sou antes de tudo um ficcionista – meu velho vampiro, você não devia ter me ajudado! –, rascunhei o romance Chá das cinco com o vampiro (Objetiva, 2010).
Este romance foi recusado pela Record, que publicava meus livros, e ficou em meus arquivos de inéditos. Um amigo em comum, o cearense Pedro Salgueiro, que sempre me visitava, pediu acesso ao romance, testei a honestidade do homem e imprimi uma cópia para ele. Salgueiro correu entregar o troféu de X9 para o vampiro, que intensificou uma campanha contra mim, para que me desligassem da Gazeta do Povo. Era direito dele, fora o responsável pela minha entrada no jornal. Mas ninguém me demitiu. Depois, Dalton produziu uma peça acusatória, “Hiena papuda”, publicada em Duzentos ladrões (L&PM, 2008). Daí me liberei de qualquer compromisso de lealdade.
Contei tudo em uma entrevista ao Paiol Literário, veiculada no jornal Rascunho, e a editora Isa Pessoa me ligou dizendo que queria publicar o romance. Valeu, Isa! A edição resultou em meu maior sucesso de mídia – saiu matéria em todos os jornais e fui destruído. O livro nunca esgotou a primeira edição.
Continuei resenhando positivamente os lançamentos dele. Hoje, concluo que tinha razão, nunca havia sido nem seria um velho. Era um contemporâneo de cada geração. Agora, definitivamente atemporal.
*Miguel Sanches Neto é escritor, crítico literário, professor e reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).