6:38O voo do Vampiro

por José Maria Correia 

Ah essas lutas com as palavras , se tornam as mais vãs.
Enquanto lutamos, mal nasce a manhã.
Se assim escreveu Drumonnd, imagine um  simples mortal como eu.
E escrever logo sobre o nosso maior contista.
Alguém que conheci ou assim imagino, aos doze anos de idade.
Em um velório de um defuntinho.
Uma criança, amigo meu de brincar na rua Guttemberg – e que se foi.
De uma doença da infância .
O pai disse na casa dos vizinhos Trevisan, “aquele é o parente que é escritor”.
E disse o nome Dalton, “ele é o Vampiro de Curitiba”.
Eu fiquei apavorado , ele poderia ter a altura de um Bela Lugosi , o ator romeno e o Drácula mais famoso.
Mas era bem mais jovem e em nada lembrava o personagem das sombras e dos filmes que eu assistia no Cine Curitiba.
Bem, o tempo passou e claro que aprendi muito sobre o Dalton  e passei a ler seus livros e gostar dos personagens entre erotismo, relações freudianas, ironias e violência de uma forma descrita sem apelações, com um humor noir.
Não sou crítico literário, portanto apenas percorro minhas lembranças.
Em 1964, bem depois, eu já estava no Colégio Estadual e na biblioteca lendo todas as obras proibidas de Jorge Amado, o que faço até hoje de forma alternada.
Foi uma escola para ler Dalton Trevisan e Nelson Rodrigues .
Os três são construtores de personagens como foram Machado de Assis, Garcia Marques e tantos outros que amei conhecer .
Saindo do período do  Colégio Estadual,  fui dar aula de literatura para vestibular em um Cursinho próximo da Livraria do Chaim, em frente à Reitoria,e ali passei a encontrar comprando livros o famoso escritor .
Foi uma oportunidade de trocarmos umas palavras nas estantes ,
Depois, nessa via cultural e já acadêmico de Direito da Universidade Federal em 1968,  eu frequentava a Livraria do Senhor Colares, na Presidente Farias, e saindo de lá para a livraria Guignone , encontrava o onipresente Dalton conversando com o livreiro Dude , pai do meu amigo Fernando, ex-secretário de Cultura.
Ali eu já estava mais enturmado e admitido para ouvir um pouco do que conversavam sem ser inconveniente.
A próxima parada era a tradicional Confeitaria Schaffer,que  o Vampiro frequentava, não para beber sangue, mas uma angelical coalhada elegantemente servida entre pessoas muito bem trajadas.
Era um ponto de intelectuais, profissionais liberais, jornalistas, doutores,  políticos e pessoas da sociedade que ali se reuniam para conversar e desfrutar da tranquilidade.
Pena que fechou. Deveria ser mantida como fizeram com a Colombo no Rio de Janeiro onde até Dom Pedro II frequentou .
O Vampiro não voava, mas o Dalton tinha pernas ágeis e percorria todo o circuito cultural a pé, como gostava, de livraria em livraria, e depois partia para a “Cinelândia”.
Na quadra dos cinemas da mesma rua XV e da João Pessoa, mergulhava na penumbra de um Ópera, poderia ser a do Fantasma, mas não era, ou Avenida, o Palácio ou o Rívoli , todos com telas de seda, assentos estofados e projeção em Cinemascope.
Eu também – e assim me tornei cinéfilo.
Ainda na rota do nosso contista estavam as magníficas bancas de jornais onde ele ia buscar revistas da semana e jornais do dia posterior, hábito que muitos tinham em tempos que não havia internet nem os meios digitais de hoje, e era tudo muito melhor.
O Dalton tinha um Physique du rôle  de escritor e intelectual como tinha o Nego Pessoa e tem o Carlos Castelo, o Zé Beto e o Padrella pessoas que não passam anônimas mesmo que desejem.
E para encerrar a noite, aí sim surgia o Vampiro . Podia estar em alguma esquina à espreita ou em um ambiente boêmio para ouvir as histórias dos habitués que frequentavam pelos mais diversos motivos .
Diversão com as moças da noite, sexo, para beber, buscar drogas ou simplesmente para conversar com amigos .
E havia grandes orquestras e shows com os artistas mais famosos como Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto e Angela Maria .
Da boêmia musical ao Bas-Fond.
E o Vampiro não .
Ia na  mais absoluta discrição por ofício e em um dos cantos tudo observava com os jornais embaixo do braço.
E ali não foram poucas as vezes em que eu como, Delegado, já em 1973,  supostamente à trabalho para a captura de bandidos perigosos, para obter informações ou atender alguma ocorrência mais grave, encontrei amigos jornalistas, contistas e esporadicamente e solitário  nosso Dalton Trevisan.
Permanecia analisando as pessoas e buscando elementos culturais para os seus contos como se fosse um Lautrec ou um Hemingway.
No meu imaginário eu julgava ter certa identidade por estar no mesmo elemento da criação. mesmo assim nunca ousei me insinuar para me tornar próximo do Dalton ou atrapalhar seu processo criativo.
Essas singelas lembranças são fruto do afeto e da profunda admiração pelo mestre do conto com a veia paranaense, nossas polaquinhas, santas populares, crendices e pessoas do povo que contêm revelações e críticas de costumes, conservadores locais
Dalton escapou da sanha das fogueiras de livros e das campanhas de ódio dos tempos atuais e dos haters.
Viveu 99 longos anos e  deixou uma obra que durará 990 ou enquanto houver bibliotecas. Se eternizará.
Tive o privilégio de estar umas duas vezes na antiga  casa do Dalton   levando minha mulher Angel em festividades da esposa e irmã de Ivete Fruet.
Não me demorei e respeitei a privacidade do escritor .
Não sou dos que se jactam de terem sido amigos de todos os famosos que falecem.
Não fui, mas, sim, um espectador privilegiado com os encontros que Vinicius dizia  ser a arte do encontro, apesar de tantos desencontros.
E quando passo pela antiga casa da rua Ubaldino do Amaral, já fechada e desabitada, sinto uma certa sensação de pertencimento pelos encontros fortuitos nas livrarias, por ser leitor e pela cordialidade do Doce Vampiro, o que é muito quando esperamos apenas um olhar de quem admiramos e resta a solidão.

“toda casa era um corredor deserto,
Até o canário ficou mudo
Não dar parte de fraco
Ah Senhora fui beber com os amigos
Uma hora da noite eles se iam
Ficava só sem o perdão da sua presença
Última luz na varanda
A todas as aflições do dia” (Dalton)

 

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