6:49O ordinário extraordinário

por Carlos Castelo

Meu colega de ofício, o escritor e editor-adjunto da revista Rubem, Anthony Almeida, está ministrando um curso chamado Isso dá uma Crônica (que, aliás, recomendo a todos). Num de seus testemunhais em vídeo sobre a oficina, , segurando uma caneca de café, Anthony diz que é possível escrever crônicas até mesmo sobre aquele utensílio.
Empedernido como sou, mesmo sendo alta madrugada, me pus a tentar desenvolver algo sobre a minha caneca de café. Uso uma muito especial, pintada por minha filha Luísa. Ganhei-a no Dia dos Pais, quando ela cursava a 3ª série do Fundamental. Traz minha figura no centro, ladeada por um livro, uma caneta, e óculos.
Fui logo encarando a companheira de porcelana, em busca de inspiração. Mas, ao contrário do resto de infusão que ela continha, o lampejo não veio forte. Surgiu como um café sem graça, do tipo FFFF: frio, fraco e com o fundo cheio de formigas.
Tentei descrever suas curvas e relevos, como se ela fosse uma personagem de romance. Mas só consegui me ater à marca circular deixada por ela na mesa, como um lembrete do tempo que escorre tão rápido, manchando a madeira e a criatividade.
Pensei em elogiar sua resistência, sobrevivente de tantas madrugadas insones. Mas até isso não me pareceu digno de nota, e me vi encarando suas profundezas, como quem encara um precipício de cafeína.
Lembrei-me das noites em que, ainda zonzo de sono, confundi açúcar com sal, e ela, impassível, observou minha careta de amargor sem uma única trinca de riso. Ou da vez em que, na pressa, a derrubei, e ela quicou no chão como uma acrobata de circo, sem derramar uma gota sequer.
Ah, meu São Lourenço de Huesca, ai de mim se acontecesse algo com meu presente de Dia dos Pais!
O fato é que ali ainda estava eu, mirando uma caneca vazia, tentando encontrar significantes para preenchê-la de significado. E quanto mais olhava, mais percebia que talvez a sua grandeza estivesse justamente em outras características. Sim, as de um objeto cotidiano, testemunha silenciosa de momentos ordinários e extraordinários, que guarda em suas dimensões histórias de uma existência. E, diante da epifania, conclui que o real desafio não seria encontrar algo para escrever sobre uma caneca de café, mas perceber que, mesmo nas coisas mais prosaicas, há um microcosmo a ser experienciado.
E, com esse pensamento, parei de tentar redigir a crônica. Bastou enchê-la mais uma vez, rever os desenhos da filha, e provar o conteúdo da caneca.

(Publicado no Estadão)

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