de Carlos Castelo
Em 2032, no auge do segundo Reich de extrema-direita, Joãozinho Lobo Villas, um conhecido compositor de pagodes, viu sua vida virar de cabeça para baixo. Naquele momento histórico, até o ritmo alegre do samba podia ser considerado uma ameaça à moralidade da pátria — ao menos na opinião do Ministério da Cultura, rebatizado de Ministério do Bem-Estar Tradicional.
A crise começou quando Joãozinho Lobo Villas, com seu hit “É calote, mas eu pago”, liderava as paradas, embalando o povo com versos sobre a vida financeira apertada. Mal sabia ele que a canção tinha chegado aos ouvidos de Messias II, filho do antigo líder e presidente por direito hereditário. Durante um churrasco informal com seus ministros, alguém botou o pagode numa caixinha de som para animar o papo. Foi um desastre.
– Como é que tu me bota um troço desses pra tocar aqui, rapaz? Isso é terrorismo, pô! – teria gritado o tirano, cuspindo seu pão com leite condensado sobre a mesa.
No dia seguinte, um artigo apareceu no Verdadeiramente Livre, o jornal oficial do governo, com o título “Caos em vez de música: a degradação do pagode bolivariano”. Diziam que Lobo Villas promovia uma mensagem subversiva, que incitava a desobediência fiscal e a balbúrdia financeira. A partir daí, a vida do compositor desandou.
Sob pressão do novo decreto cultural, Lobo Villas teve que retirar de circulação sua nova obra-prima, em parceria com o agogoísta Neco Reco: “Pagode do emprego que não vem”. Isso antes mesmo de lançá-la nos streamings. Daí em diante precisou entrar em modo sobrevivência, resgatando antigos sucessos mais neutros, como o batuque gospel “Fica com Deus” e o partido alto “Conte a benção”.
Em 2033, sob o comando de Dona Floriana, a poderosa ministra do Bem-Estar Tradicional, o Decreto do Samba de Raiz foi instaurado. Lobo Villas, acostumado à fusão de pagode com gêneros mais contemporâneos, foi acusado de “formalismo melódico”, uma infração gravíssima na política cultural brasileira. “Música elitista que não serve ao brasileiro honesto” diziam os censores. Se quisesse sobreviver, teria que compor algo que estivesse mais de acordo com os interesses da nação: músicas sobre louvores, família, armas e motociatas.
Lobo Villas foi obrigado a aparecer em público, numa cerimônia constrangedora, onde leu uma carta de desculpas à nação. Passou a criar trilhas sonoras para documentários governamentais. Era isso ou arriscar uma temporada no Pantanal, que tinha se incendiado e virado reserva de dissidentes políticos.
Enquanto isso, o sambista levava uma vida dupla. Gravava álbuns patrióticos sob a tutela do Estado, mas, no fundo dos botecos, improvisava letras repletas de ironia e crítica.
Quando Messias II finalmente saiu do poder, o pagode voltou às rádios, as escolas de samba retomaram seus desfiles, as novelas continuaram ruins, e o país permanecia quebrado, mas dessa vez com trilha sonora. Lobo Villas passou a ser reverenciado como mártir cultural.
Após passar três anos como preso político no Pantanal, Neco Reco declarou à imprensa ao ser libertado:
– Ninguém gosta de ditadura, mas ela fica melhor com um cavaquinho.