9:02A bizarra cabeça tiktok do dono da RBS, o maior grupo de mídia do sul

Por Luiz Cláudio Cunha*, em GGN

O empresário Nelson Pacheco Sirotsky, gaúcho de Porto Alegre, é uma grande figura humana. Sorridente, afável, simpático, acessível, bem-humorado, cabelos pretos ordenadamente penteados para trás, um bigode quase imperceptível e uma barba bem aparada que não esconde os primeiros fios brancos, arredio a terno e gravata e adepto de esportivas sapatilhas de solado branco, Nelson aparenta ter bem menos do que seus 71 anos.

Presidente da Maromar, empresa de investimentos da família, membro do conselho nacional da Endeavor Brasil e acionista da Maiojama Empreendimentos imobiliários, dona dos dois maiores shopping centers de Porto Alegre, Nelson Sirotsky é formado em Administração de Empresas pela UFRGS, a universidade federal gaúcha, com curso de executivo na maior escola privada de Los Angeles, a University of Southern California. Nelson foi presidente da Associação Nacional dos Jornais (ANJ) por dois mandatos sucessivos, de 2004 a 2008. Ele não é jornalista, mas entre os vários títulos que possui o que mais gosta e usa é o de publisher da RBS. Ele tem muito orgulho de sua condição de principal editor da RBS, o mais expressivo grupo de comunicação do sul do país, com 12 emissoras de TV afiliadas à hegemônica Rede Globo, cinco rádios (incluindo a Gaúcha, a maior no Estado), a mais vigorosa plataforma de jornalismo digital da região (a GZH) e três jornais, liderados pela Zero Hora, o maior e mais importante do Rio Grande do Sul.

O grupo teve em 2023 uma receita bruta de R$ 900 milhões e as marcas da RBS chegam a 98% dos 497 municípios gaúchos. Com as audiências somadas de TV, rádios, jornais e portais da internet atinge 11,2 milhões de pessoas, mais de 100% da população do Estado. Em julho passado, a RBS concluiu um processo de dois anos de reorganização societária que deu uma nova harmonização facial para o grupo. Alguns sócios saíram, como a irmã mais velha, Suzana, outros perderam força e o núcleo da família Sirotsky se fortaleceu: os outros três filhos do patriarca e fundador Maurício Sirotsky Sobrinho (1925-1986) – Sônia, Nelson e Pedro – e a preservada figura do presidente emérito do grupo, Jayme Sirotsky, irmão de Maurício, permaneceram. Mas é Nelson, hoje o líder principal do clã, que surge como a cara e o jeito mais visível e influente da RBS.

Essa ampla cirurgia facial foi o tema de uma entrevista revelador com Nelson Sirotsky realizada no final de agosto passado, via YouTube, e promovida na Coonline, um encontro virtual de veteranos jornalistas gaúchos reunidos semanalmente sob a liderança do experiente José Antônio Vieira da Cunha, fundador e primeiro presidente da mítica Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre (Coojornal), que iluminou a imprensa brasileira nos anos de treva da ditadura entre 1974 e 1983, até ser mortalmente apagada pela pressão sobre os anunciantes da cooperativa exercida pelos generais incomodados com a liberdade crítica da entidade. Agora, todo final de quarta-feira, Vieira convida nomes expressivos da mídia nacional, entre jornalistas, executivos, pensadores e especialistas em comunicação, para debater virtualmente as graves questões que afligem a mídia nos trepidantes anos digitais do início do Século 21. Vieira comanda o debate com uma dezena de jornalistas veteranos do sul, muitos deles contemporâneos dos bravos tempos da Coojornal e hoje espalhados pelo Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Na Coonline de número 45, ao anoitecer de quarta-feira, 28 de agosto, foi a vez de ouvir Nelson por uma hora e meia.

Reveja aqui: https://www.youtube.com/watch?v=A7tz0ipQIP0

 

Foi nesse encontro que Nelson baixou a guarda, enunciando inesperadamente ideias desconcertantes, emitindo conceitos surpreendentes e defendendo conceitos absurdos, rasteiros, impensáveis – pela ligeireza e frivolidade – na cabeça de qualquer comandante responsável das grandes corporações da mídia nacional. As duas derrapadas mais notáveis: sua doida ambição de ter um jornal com mais colunistas do que jornalistas e sua inusitada admiração pela adolescente plataforma do TikTok. “O jornalismo era sinônimo de papel. E o mundo mudou profundamente. O comportamento do consumidor e da tecnologia está sendo modificado. Isto é o Século 21. Na Zero Hora, assim como no New York Times, a Folha, o Estado de S.Paulo, o papel é apenas um segmento de uma marca do jornalismo*, lembrou, confirmando com números essa redução forçada da era digital: a Zero Hora, que teve mais de 200 mil assinantes na década de 1990, hoje tem apenas 40 mil. “O papel, como veículo de distribuição de informação, continua existindo, mas tem muito menos relevância, muito menos clientes. O número de pessoas que assinam todos esses jornais, que leem no papel, diminui todos os dias. Este é um caminho irreversível”,

O jornalismo de colunistas

Nelson contou que, no início de 2024, numa conversa em Porto Alegre com o fundador do GPS de trânsito Waze, o israelense Uri Levine, perguntou a ele até quando vai existir jornal em papel: “Enquanto tiver cliente”, respondeu Levine, um especialista na fuga rápida de engarrafamento mental. Cliente, aliás, é uma expressão mercantil que Nelson adota alegremente, como se o leitor de seu jornal fosse o prosaico consumidor, por exemplo, de uma fábrica de salsichas – sem querer ofender as salsichas, claro!. “Nós ainda temos 40 mil valorosos, relevantérrimos clientes para nós”, consola-se Nelson, para quem o maior desafio da RBS é ampliar, no jornal impresso, o número de “clientes”.

Ele diz que está tentando fazer, no print, “um jornalismo mais moderno, mais contemporâneo”, com uma fórmula aparentemente revolucionária: jornalistas com opinião e com informação. “Não aquelas a que estávamos acostumados, reportagens com 2 ou 3 páginas, mas com informações sucintas, rápidas, objetivas. Se o repórter quer aprofundar, ele tem outros canais da própria Zero Hora para fazer isso no mundo digital”. Nelson garante que não diminuiu o número de informações da Zero Hora todos os dias: “O jornal está mais compactado, são menores as informações, mas isso é parte da linha que adotamos. São jornalistas que dão opinião e informação, opinião e informação responsáveis”. Nelson diz que os assinantes são muito valiosos:” Queremos aumentar, não perder nenhum cliente”. A reação do público ao novo formato do jornal, garante, foi positiva: “De modo geral, as pessoas adoraram o novo jornal impresso”. Uma pesquisa com os assinantes revelou uma única, grave, clamorosa reclamação da distinta clientela: e o horóscopo? Cadê o horóscopo, que sumiu na reforma do jornal? “Nós tínhamos tirado. E o horóscopo voltou”. Nelson em nenhum momento se perguntou o que havia de errado com um jornal de quem os “clientes” reclamam apenas pela falta de horóscopo…

“O público achou muito bom o fato dos colunistas, os comunicadores, terem opinião e também trazerem informações – sucintas, rápidas, objetivas. O público gostou do novo formato do jornal”, festejou o dono da RBS. Nelson diz que, dos atuais 2.200 funcionários da RBS, 500 são jornalistas. E, para satisfação maior do dono, cresce cada vez mais a população de colunistas: já são 81, um colunista para cada grupo de seis jornalistas. O jornal publica uma relação alfabética dessa pletora de titãs, e apenas cinco das 26 letras do alfabeto (B, O, W, X e Y) não possuem – ainda – um ilustre titular de coluna. Os nomes da letra M, com 15 colunistas, são os mais pródigos da seleção, seguida pelo J e pelo L, com oito cada.

A RBS percebeu que essa multidão de especialistas em informações ‘sucintas, rápidas e objetivas’ movimenta o mercado de marketing digital como “criadores de conteúdo”, peças essenciais da creator economy, um nicho supostamente de gente criativa que reúne influenciadores digitais, blogueiros, ativistas, podcasters, artistas, músicos, atletas – e até jornalistas. É um mercado que, segundo a eufórica RBS, já movimenta no mundo US$ 250 bilhões com potencial para crescer mais de 90% até 2027, segundo projeção do ano passado da Goldman Sachs.

Pronto. Criou-se então a Pulso.creators, “a primeira agência de criadores de conteúdo full service do sul do país”, engenho e arte da RBS para oferecer ao mercado “inovação em marketing de influência”. Com a ambição de ser uma “proposta de valor única para conectar marcas e influenciadores”, a empresa oferece projetos integrados multicanais, “explorando formatos e possibilidades com a agilidade do mundo digital”. Misturando de forma obscena jornalistas com seus desejos comerciais mais privados e lascivos, a empresa de Nelson Sirotsky oferece com despudor seus profissionais, corpos e mentes ao mercado mais insinuante: “Os clientes contarão com o casting de talentos da RBS e influenciadores relevantes da Região Sul, contemplando diferentes territórios, e ainda serviços como consultoria e pesquisa”, prometia, em agosto de 2023, no sedutor lançamento da Pulso.creators.

A diretora executiva e estratégica da Pulso, Gabriela Frühauf, define o papel desses modernos, conectados comunicadores que Nelson tanto admira pela informação sucinta, rápida e objetiva: “Podemos, por exemplo, montar um squad ativo com o cliente, que pensará nas problemáticas, nos objetivos e nas campanhas da marca. É possível fazer testes de campanha antes de colocá-las na rua ou mesmo montar um sprint criativo, de onde pode nascer um novo produto ou uma nova embalagem. Tudo isso usando a inteligência dos criadores”. Entenderam?

Frühauf rasga a fantasia e confessa: “Somos uma full service que atua do topo ao fundo do funil de vendas”. Não fica claro o que faz nesta malcheirosa barafunda comercial um jornalista, ou colunista, enredado num feio e escancarado esquema mercantil, “do topo ao fundo do funil de vendas”, que por definição não é o destino de um profissional sério da informação. Alguém precisa avisar a RBS que jornalista ou colunista não é mascate, nem camelô, nem mesmo embrulhado em colorido papel crepom como um reles vendedor. Desde a década de 1960, quando a finada Editora Abril de Victor Civita começou sua vitoriosa trajetória de empresa então invejada na mídia de informação, criou-se a cláusula pétrea da separação entre Estado e Igreja, a fronteira intransponível entre Editorial e Comercial, entre jornalismo e publicidade. Portanto, é uma baita maldade e um intragável retrocesso converter um jornalista profissional em um disfarçado ambulante digital, viu, Nelson?

Sirotsky, o Carolus do Século 21

Nessa dupla e confusa alquimia, que mistura informação com opinião e comunicador com vendedor, a festejada superpopulação de colunistas da RBS pode garantir uma posição de honra no pódio do jornalismo mundial ao brasileiro Nelson Sirotsky.

O primeiro posto cabe, é claro, ao alemão Johann Carolus (1575-1634), o anônimo dono de uma gráfica na cidade de Estrasburgo, cidadã francesa às margens do Reno que integrava no Século 17 o Sacro Império Romano-Germânico. Foi lá que Carolus publicou em 1605 aquele que é reconhecido pela Associação Mundial de Jornais como o primeiro jornal impresso da história. Parecia um pequeno livro, em uma única e pesada coluna de texto, sob o título intragável de Relation aller Fürnemmen und gedenckwürdigen Historien (“Relato de Todas as Notícias Ilustres e Comemorativas”). Sirotsky perdeu a primazia do primeiro jornal, mas Carolus também nunca imaginou inventar um jornal mais povoado por colunistas do que por jornalistas, como sonha fazer o empresário gaúcho.

Sem chamar a atenção, como fez Johann Carolus quatro séculos atrás, Nelson Sirotsky está agora consumando a inédita criação do “colunalismo”, o revolucionário ‘jornalismo de colunistas’. Se completar essa proeza, Sirotsky, o Carolus do Século 21, vai encerrar com fecho de ouro um ciclo insuperável da crônica histórica da imprensa inaugurada por Carolus, o Sirotsky do Século 17.

A RBS, como milhões de gaúchos, foi uma das flageladas das enchentes que aconteceram no Rio Grande do Sul, entre o final de abril e o início de maio de 2024. Foi a maior tragédia climática da história do Estado. Em apenas seis dias choveu o equivalente a um terço do que chove no ano inteiro. Algumas cidades tiveram 700 mm de chuva, o que corresponde a 700 litros de água na área exígua de um metro quadrado, uma coluna de 70 cm de altura nesse espaço de solo restrito. Em poucos dias, segundo dados do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, a chuvarada levou mais de 14 trilhões de litros de água para o Guaíba, quase metade do reservatório de 1.350 km² da hidrelétrica de Itaipu, a segunda maior do mundo.

A enchente atingiu 478 dos 497 municípios gaúchos, afetando 2,5 milhões da população de 11 milhões e matando 183. Quase meio milhão de pessoas tiveram que deixar suas casas só em Porto Alegre, onde o Guaíba se elevou mais de cinco metros acima da cota. A água invadiu a sede da RBS na avenida Ipiranga, às margens do arroio Dilúvio, e inviabilizou o parque gráfico onde rodava o jornal, num prédio próximo ao aeroporto Salgado Filho, também desativado pela chuva. A Zero Hora ainda saiu no sábado, 4 de maio, mas não conseguiu rodar nas rotativas encharcadas na segunda,6. Para sair nos outros dias, o jornal precisou de uma impressão de emergência nas rotativas do parque gráfico do Grupo Sinos, na cidade vizinha de Novo Hamburgo.

A limitação das impressoras do Grupo Sinos obrigou a Zero Hora a enxugar sua edição das 40 páginas originais para 32. Quando a água baixou e a RBS voltou às suas rotativas, o jornal percebeu que o público não reclamou. Daí, por razões econômicas e graças à enchente, a Zero Hora adotou como definitiva a edição mais enxuta e emergencial de 32 páginas nos dias de semana, de segunda a sexta-feira, o que representava na prática uma redução de 20% no espaço editorial. Menos custo e área menor para o jornalismo, mas o maior consolo é que nenhum colunista perdeu seu lote e reduto. Afinal, são todos sucintos, rápidos e objetivos…

Com um jornal mais limitado no espaço e sua crescente superpopulação de quase 90 colunistas, a Zero Hora hoje poderia sobreviver quase três meses ininterruptos publicando páginas apenas com colunas, sem a intrusão de jornalistas. Nem o velho Carolus imaginou coisa tão genial!…

A visão TikTok do jornalismo

Com a retaguarda seca, a RBS agora tem um objetivo líquido e certo, segundo Nelson Sirotsky: entrar em todas as plataformas. E, aqui, fez a revelação talvez mais espantosa: sua admiração pelo TikTok, o aplicativo chinês de 2016 que permite criar vídeos curtos de até 60 segundos que podem ser acelerados, retardados e editados. É um sucesso mundial com mais de 1 bilhão de usuários, geralmente adolescentes, que inundam as telas de seus celulares com dancinhas imbecilóides, vídeos pretensamente engraçadinhos e cenas idiotas de conteúdo zero e repercussão imediata, para quem gosta…

Nelson, por exemplo, adora. A partir dessa baboseira dos tempos modernos, Nelson Sirotsky revelou ao mundo, na Coonline, que a RBS trata toda aquela bobajada como coisa séria. A ponto de criar um inacreditável projeto na sua moderna empresa chamado “TikTokation da Informação e do Jornalismo”. É isso mesmo que você acaba de ler: TikTokation… As palavras incongruentes de Nelson mostram que ele mesmo não consegue traduzir, ao certo, o que ele está vendo e antevendo: “TikTok é gurizada, é a garotada que tá lá recebendo, trocando vídeo de qualquer jeito. Não tenho a menor ideia…Tem uns dois ou três que passa e eu não entendo, não consigo… Não sou frequentador desse mundo, sou do mundo analógico”.

Apesar de sua frágil condição de forasteiro tonto nesse mundo apalermado, Nelson vislumbra ali alguma viabilidade comercial a ser desfrutada e transformada em lucro: “TikTokation da Informação… Fazer vídeos para o TikTok tratando de assuntos sérios, jornalísticos, numa linguagem compreensível para os garotos adolescentes que estão ali ouvindo, e competir com as outras publicações que estão rolando por lá, entenderam? São desafios gigantes… Estamos preocupados em fazer investimentos no jornalismo, mas investimentos em que a gente enxergue a sua sustentabilidade e que fale com o público”.

Entenderam?

No seu delírio comunicacional, Nelson Sirotsky imagina fazer vídeos de até (!) 60 segundos sobre assuntos sérios, jornalísticos, mas compreensíveis para uma garotada adolescente nada preocupada com assuntos sérios, muito menos jornalísticos, produzidos por seus brilhantes criadores de conteúdo, os geniais comunicadores da Pulso.creators, onde se concentram os ‘colunalistas’ sucintos, rápidos e objetivos da tropa de elite da RBS.

Entenderam?

Ah, e desde que sejam sustentáveis economicamente, o que seria uma outra fantástica proeza para um produto rápido e rasteiro destinado a uma gurizada imatura sociologicamente conhecida pelas empresas sérias por não ter autonomia nem estabilidade financeira. Um dilema que só o TikTokation de Nelson certamente pode resolver! Se alguém ainda duvida desse projeto mirabolante do dono da RBS, confira aqui na fala de Nelson na Coonline, no tempo 1:08:50 do vídeo (https://www.youtube.com/watch?v=A7tz0ipQIP0).

Na santa cruzada pelas maravilhas do mundo digital, a RBS procura repassar seu trepidante acervo para outras plataformas não proprietárias. “Temos hoje um conjunto de produtos jornalísticos ancorados no YouTube. É um modelo de negócio completamente diferente. A publicidade no YouTube é pela relevância do conteúdo, pela audiência que o conteúdo gera”. O líder da RBS diz que sua ambição é entrar em todas as plataformas, falando uma linguagem diferente do jornalismo tradicional, mas não explica o que seria isso: “Estamos com vários produtos, alguns com muito sucesso. Economicamente ainda sem relevância. Temos vários projetos na área digital, que ainda não estão dando resultado…”.

O editor servil às multidões

Nelson Sirotsky define, com uma frase passiva, a sua visão como publisher do jornal: “Estamos resolvendo a questão do jornalismo de qualidade que o público quer. Não a que nós queremos”. Errado, Nelson! Um jornalista sério e respeitável, que entende seu papel e sua missão melhor do que o distinto público, não é um profissional de cabresto das multidões anônimas, obediente e servil aos seus clamores mais disparatados. O jornalismo – desculpe dizer, Nelson – não se move pelo TikTokation da Informação… É melancólico constatar que essa vergonhosa degradação do jornalismo é aceita com a naturalidade e a fatalidade do determinismo cibernético. Antes, os jornalistas tinham a humildade e a pretensão de procurar, investigar, apurar, confrontar, editar e publicar fatos e histórias que explicavam o mundo, iluminavam a verdade e tornavam a sociedade mais informada e mais consciente.

Um jornal, mesmo como empresa privada, tem o múnus do interesse público que deve ser estimulado, defendido e preservado, sob o primado das informações indispensáveis que devem ser apuradas por profissionais qualificados e publicadas sempre que estiverem em jogo a verdade, os direitos humanos, as liberdades e a democracia, como valores supremos da civilização. Em alguns momentos graves da História e das nações, são os jornais e os jornalistas que encarnam essa obrigação, assumindo a linha de frente e informando, antecipando e orientando seus povos para as posições mais corretas, ética e moralmente. Não é uma postura eventualmente prepotente e autocrática do jornalista. É um dever socialmente indeclinável de separar o bem do mal e trazer informações e ideias para um debate mais qualificado e consequente das sociedades em dúvida e em conflito.

Jornalista não é um capacho, Nelson, submisso à vontade disforme das multidões desorientadas por falsos messias ou capitães autoritários. Jornalista é um ser pensante, que deve jogar luz sobre a treva, esclarecendo e até mesmo contrariando o alarido equivocado das hordas ensandecidas por mensagens enganosas dos profetas da ignorância. Nenhum jornalista sério deve acreditar que grupelhos extremistas ajoelhados diante de um quartel, implorando pela intervenção militar contra a democracia, fazem a coisa certa para melhorar o país e a vida do povo. O jornalista tem a obrigação de dizer “não” e de denunciar a estupidez, Nelson.

Não se conhece nenhum editorial da RBS, nenhuma manifestação relevante de Zero Hora condenando a concentração insistente – semanas a fio – de patriotários fascistas fantasiados de verde-amarelo, com a Bíblia em punho e lemas desaforados contra o regime democrático e a Constituição, acampados diante do QG do Exército em Porto Alegre e em Brasília, numa indução inevitável para o atropelo manipulado de vândalos que transformaram o 8 de janeiro de 2023 em Brasília na mais violenta tentativa de golpe já ocorrida no país desde 1964.

Jornalista tem o direito e o dever de rejeitar o que o público quer, mesmo quando faz parte de uma eventual maioria extremada, para condenar e denunciar a turba excitada pelo radicalismo ou perturbada pela ignorância contra a lei, as liberdades e a democracia. Jornalista não pode ficar cego, mudo e passivo diante do erro, da truculência e da má fé. A sabedoria não é um privilégio das multidões, Nelson. Pela simples matemática, elas nem sempre são justas, ou ao menos sábias. Ao contrário.

Em agosto de 1934, 42 milhões de alemães foram às urnas para decidir, num plebiscito, se o chanceler Adolf Hitler deveria acumular o cargo de presidente da República, vago havia duas semanas com a morte de Paul von Hindenburg. Mais de 38 milhões, 90% do eleitorado, aprovaram a acumulação de poder no fanático demagogo que, cinco anos depois, arrastaria o mundo para o maior conflito bélico da história, a Segunda Guerra Mundial, que matou entre 50 e 70 milhões de pessoas.

O Führer gostou dessa atravessada e aplastante ideia de sabedoria popular. Menos de quatro anos depois, em abril de 1938, na Áustria já ocupada pelas tropas nazistas, Hitler promoveu outro plebiscito, desta vez com uma única pergunta ao acuado povo austríaco: “Você concorda com a reunificação da Áustria à Alemanha e você vota no partido do nosso líder Adolf Hitler?”. O voto não era colocado diretamente na urna. O eleitor entregava a cédula a um gentil e atento “fiscal” nazista postado ao lado da seção eleitoral. Hitler teve uma vitória ainda mais arrasadora, com 99,73% dos votos. E a Áustria acabou anexada, sem resistência, ao III Reich hitlerista.

Duas décadas antes da explícita submissão de Nelson Sirotsky à “sabedoria das multidões” – expressão cunhada pelo jornalista americano John Heilemann, da revista quinzenal New York –, um jovem estudante da ciência da computação da Universidade de Las Vegas, Nevada, EUA, teve a mesma e infeliz ideia. Em 2004, aos 27 anos, Kevin Rose inventou uma rede social chamada Digg (cavar, em inglês), que existe ainda hoje, com mais de 8 milhões de acessos mensais. Parte do mesmo princípio reducionista que transforma jornalistas em servos letárgicos da vontade desqualificada de um bando de gente anônima e diluída na massa de usuários.

O critério é de uma tola, boboca simplicidade: os internautas, incluindo até os idiotas, votam nas notícias que mais lhes agradam, criando uma cotação em que os blogs – mais sucintos, rápidos e objetivos, como gosta Nelson Sirotsky – superam os grandes portais de relevância. É o próprio usuário que identifica, seleciona, qualifica e classifica as notícias, podcasts e vídeos mais importantes. Com a arrogância típica de quem se atribui a exclusiva autoridade emanada pela multidão ululante, Rose definiu assim a sua descoberta do Santo Graal: “Antes, era um punhado de editores que determinava o que iria para a primeira página do jornal. Agora, com o Digg, são quase um milhão de editores registrados e continuamente à procura de grandes notícias, informações, histórias e vídeos para expor à comunidade”. De repente, com o Digg, estavam dispensados de suas funções o experiente editor do The New York Times e até o sagaz publisher da Zero Hora.

Quando eu descobri essa cômoda delícia, no início de 2011, decidi testar sua eficácia. Naquele dia, 26 de fevereiro, um sábado, dois temas centrais mobilizavam os jornalistas e os editores mais qualificados do mundo: o início do cerco final ao coronel e ditador líbio Muammar Gaddafi e os levantes populares da chamada “Primavera Árabe” que convulsionava os regimes teocráticos islâmicos do Norte da África. Nem um, nem outro foram selecionados naquele sábado entre as 17 notícias mais importantes do dia pela sábia multidão de editores improvisados do Digg. Eis algumas das maravilhas mais importantes escolhidas pela rede: a descoberta no Texas do efeito afrodisíaco da urina do macaco-prego macho sobre a fêmea, a mulher de Boston que perdeu a cobra de estimação no metrô, a vencedora do concurso “pior mãe do mundo”…

Os imbecis e o idiota da aldeia

Talvez poucos, entre os milhões de ‘editores’ informais do Digg, e certamente quase nenhum dos adolescentes balouçantes do TikTok passaram por perto de um livro chamado O nome da rosa, um envolvente romance policial, com densas referências históricas e filosóficas, passado num mosteiro beneditino da Itália do Século 14, onde sete monges morrem de forma misteriosa em sete dias. O autor da ficção, o italiano Umberto Eco (1932-2016), filósofo, linguista, semiólogo, foi diretor da Escola de Ciências Humanas da Universidade de Bolonha e professor nas universidades de Yale, Columbia e Harvard. O livro lhe deu reconhecimento literário e popularidade mundial. Mas nada teve mais destaque na carreira de Eco do que sua ousada declaração de 2015, quando recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade de Turim.

Eco definiu, como ninguém, o turbilhão de transformações culturais e sociais provocadas na sociedade, na transição do Século 20 para o 21, com o advento do computador conectando bilhões de seres humanos que nem se conheciam na rede sem limites da internet. Disse Eco em 2015: “As mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à coletividade. [Mas] diziam imediatamente a eles para calar a boca… Enquanto que, agora, eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio Nobel. O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”.

Um ano antes da invenção do TikTok, que agravou o problema, Eco descrevia com a precisão de um filólogo o drama já evidente – graças à tecnologia – da universalização da imbecilidade, da democratização da irrelevância, da consagração do supérfluo, da santificação da futilidade. A supremacia da bobagem sobre a perenidade do essencial, algo que poderia ser resumido pelo TikTokation. Meio século antes, em 1962, dois gênios da raça brasileira dividiam uma mesa no mítico bar Veloso, na praia carioca de Ipanema: o jornalista Millôr Fernandes (1923-2012) e o compositor Tom Jobim (1927-1994).

Com aquela seriedade e profundidade que só um humorista tem, Millôr consolou o amigo maestro com um desabafo que, naqueles tempos, fazia sentido: “O mundo tem muitos idiotas, Tom, mas felizmente estão todos nas outras mesas…”. Como concluiu Eco e como não previa Millôr, os idiotas de todas as aldeias, cavalgando seus teclados e seus celulares com suas ferraduras digitais, hoje invadem nossas mesas, violam nossa privacidade, desperdiçam nosso tempo, avassalam nossa vida.

A paternidade bastarda da ditadura

A passagem do efêmero para o transcendental exige raízes solidamente encravadas no solo fecundo da razão, do propósito, da postura, do desassombro, da coragem. Essa falta do fermento primordial pode explicar, talvez, o tortuoso caminho que leva a Zero Hora, que alcança agora a maturidade dos seus 60 anos, a enveredar pelo desvão adolescente e pueril do TikTokation. O jornal de Nelson, aliás, nasceu de um aborto autoritário, não como fruto de uma pensada decisão editorial gestada por uma demanda social ou uma necessidade jornalística de seis décadas passadas.

Zero Hora é sucessora bastarda da Última Hora, o único grande jornal do país que apoiava o governo de João Goulart em 1964, portanto um veículo alheio à engajada conspiração da mídia para apoiar os generais no golpe. Seu líder, Samuel Wainer, amigo pessoal de Getúlio Vargas e ex-repórter do conspirador Assis Chateaubriand, dos Diários Associados, arrumou dinheiro do Banco do Brasil, na volta do getulismo ao poder, e fundou a edição da Última Hora no Rio de Janeiro em 1951 – dois anos antes do nascimento de Nelson Sirotsky. A UH tinha um nobre propósito, segundo seu fundador: “Romper com a formação oligárquica da imprensa brasileira e dar início a um tipo de imprensa popular e independente”.

O jornal conquistou novos leitores na cobertura das áreas trabalhista e sindical, ignoradas pela grande imprensa, e cresceu. Uma década depois, em 1961, quando Jango chegava ao poder nos braços da “Campanha da Legalidade” liderada pelo governador gaúcho Leonel Brizola, ao mesmo tempo em que nascia a conspiração para derrubá-lo, a UH de Wainer era uma vibrante, crescente e ágil rede nacional diária.

Além de Rio e São Paulo, a rede de Weiner publicava edições simultâneas em outros nove centros importantes do país – Belo Horizonte, Recife, Niterói, Curitiba, Campinas, Santos, Bauru, a emergente região sindical do ABC paulista (Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano) e, finalmente, Porto Alegre.

Na capital do Rio Grande do Sul, berço de Getúlio, Jango e Brizola e centro da resistência mais forte ao golpe, circulava a edição mais jacobina da rede de jornais de Samuel Wainer, na perfeita descrição do jornalista Jefferson Barros, em seu livro Golpe mata jornal. Desafios de um tabloide popular numa sociedade conservadora (Editora Já, 1999]. Era natural, portanto, que herdasse também todos os inimigos e a santa ira da nova ordem militar.

A UH de Porto Alegre sentiu o golpe, literalmente. Tentou manter a linha editorial e o sonho de uma resistência de Jango ao levante militar até o dia 5 de abril, domingo, mesmo com as redações carioca e gaúcha invadidas, empasteladas e incendiadas pela turba no primeiro de abril, quarta-feira, dia do golpe. No dia seguinte, quinta, apesar do estrago (carros foram virados e incendiados, bobinas de papel foram inutilizadas, máquinas de escrever e linotipos foram destruídas, mesas foram viradas e uma enciclopédia foi despedaçada), a equipe carioca conseguiu colocar nas ruas do Rio de Janeiro uma edição enxuta, usando algumas matérias que foram poupadas. Resfolegou numa impossível neutralidade por mais três semanas com censor dentro da redação e, afinal, sucumbiu em 25 de abril do ano da graça de 1964.

Na tarde de sexta-feira, 3 de abril, já exilado na embaixada do Chile no Rio, Wainer recebeu a visita do colunista Ibrahim Sued, de O Globo, como lembra Karla Monteiro em Samuel Wainer, o homem que estava lá (Editora Companhia das Letras, 2020), a biografia definitiva do líder da UH. Ibrahim falava em nome de um grupo de empreiteiros, nunca identificado, interessados na compra do jornal. “Não quero vender, Ibrahim”, reagiu Wainer. “Você é maluco? Não vê que não tem condições de manter o jornal? Eles pagam o preço que você estabelecer”, insistiu o visitante. Não chegaram a discutir números porque Wainer não deu chance. A edição carioca da UH, a única da rede que conseguiu sair naquela sexta de euforia golpista, trazia na primeira página a foto da multidão de 1 milhão de pessoas celebrando a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, realizada no dia anterior, quinta, 24 horas depois do golpe.

A sexta-feira de más notícias acabou na noite de 3 de abril com um telefonema de Ary de Carvalho, desde Porto Alegre, onde dirigia a seção gaúcha da UH. O jornal tinha circulado no dia anterior, mas não conseguiu rodar na sexta, vítima de um corte criminoso da energia. Ary contou que a polícia acabara de invadir a redação, marchando direto para o arquivo fotográfico, em busca de fotos de lideranças da esquerda. Desde 1960, por ordem do governador Brizola, o DOPS tinha destruído seus arquivos e a polícia, agora, não tinha o retrato dos adversários que caçava. Na limpa original, queimaram-se as fotos, mas esqueceram os negativos. De posse deles, a polícia da nova ordem prendeu muita gente. Um deles, o repórter da UH José Antônio Ribeiro, o ‘Gaguinho’, foi espancado quase até a morte.

ZH, parecida mas diferente da UH

Diante do cerco. Wainer topou vender a seção gaúcha para Ary de Carvalho, que viajou ao Rio para fechar negócio. Conseguiu comprar as máquinas de escrever, as quatro lambretas, as oito máquinas fotográficas, os dois carros e o arquivo restante de fotos – mas Wainer não aceitou vender o título do jornal. Com outros três empresários, Carvalho comprou equipamentos da redação, segurou alguns membros da equipe e tratou de fundar um novo diário em maio de 1964. Pediu ao chefe da diagramação, o argentino de nascimento Aníbal Bendatti, uma logomarca para o novo jornal – “parecida, mas diferente da Última Hora”. Bendatti datilografou a palavra Zero Hora, ampliou os tipos da máquina de escrever, livrou o título antigo do retângulo e cravou a nova marca num quadrado comportado. Preservou apenas o azul dos velhos tempos na cara do diário que já nascia simpático ao regime de 1964. A simpatia dos golpistas foi ainda maior.

Ary de Carvalho trazia ligações de família decisivas desde Birigui, cidade do interior paulista onde se iniciou em 1926 a carreira de sucesso de um antigo office-boy de uma agência local do Banco Noroeste chamado Amador Aguiar. Décadas depois, Aguiar tinha um emprego novo e o seu próprio banco, o Bradesco, ambos engajados de corpo e alma no projeto golpista contra Jango. Nada mais natural, assim, do que ajudar o velho amigo de um jornal que já nascia amigo dos generais vitoriosos de abril de 1964. Com o dinheiro do Bradesco, Carvalho livrou-se dos antigos sócios e cresceu. Ganhou anos depois um novo parceiro, o radialista Maurício Sirotsky, pai de Nelson, que em 1962 criara a TV Gaúcha, então filiada à Rede Excelsior. Juntos, Ary e Maurício compraram em Chicago, EUA, a moderna máquina de impressão em off set que tornou Zero Hora o segundo jornal do país a adotar a novidade – o primeiro tinha sido a Folha de S.Paulo de Octávio Frias, outro ilustre conspirador contra Jango.

O esforço fez a ZH cambalear financeiramente e, em abril de 1970, seis anos após o golpe, Carvalho vendeu as ações que tinha ao sócio e retirou-se para o Rio de Janeiro. Maurício Sirotsky, agora o único dono de Zero Hora, fizera em 1965 um movimento tático decisivo: trocou a moribunda Excelsior pela emergente Rede Globo de Roberto Marinho, a organização jornalística que mais cresceria sob a ditadura. No vácuo deste sucesso nasceu, cresceu e apareceu a Rede Brasil-Sul, a triunfante RBS de Nelson Sirotsky.

No seu primeiro editorial, na primeira página da edição de segunda-feira, 4 de maio, com o título cínico de “Servir ao povo é o nosso lema”, a ZH maquiada para seduzir os novos senhores fardados esclarecia aos atentos leitores de todos os quarteis, casernas, bivaques, unidades e acampamentos, então adulados pelos pescadores de águas turvas: “O aparecimento de Zero Hora, totalmente desligada da rede nacional de jornais que anteriormente editava Última Hora, somente foi possível com a compra do controle acionário da editora por um grupo de gaúchos representantes das diversas classes sociais. A par de sua orientação popular, Zero Hora se manterá numa linha de defesa dos princípios cristãos e de apoio a todos os que, sem medir esforços ou sacrifícios, lutam para impedir a implantação em nosso país de ideologias contrárias às nossas tradições democráticas”.

Bilhete do general na primeira página

O novo jornal remodelado e amestrado de Ary de Carvalho não se limitou ao seu editorial de bajulação. Abriu espaço dois dias depois, na primeira página da edição de 6 de maio, para uma foto, a manchete e um bilhete manuscrito pelo general Mário Poppe de Figueiredo, o flamante comandante do III Exército e, como tal, a maior autoridade estadual no novo estado de coisas. O general, sensibilizado, saudou o nascimento de Zero Hora: *Recebo com muita simpatia o aparecimento de Zero Hora. Com a orientação de propugnar pelos ideais cristãos e democráticos do povo brasileiro, será mais uma voz a conduzir a opinião pública do Rio Grande do Sul nos rumos tradicionais de nossa formação histórica”.

Para não deixar nenhuma dúvida, o jornal sapecou um pequeno editorial para elucidar uma dúvida que sobrevoava a cabeça dos gaúchos: a carestia era culpa dos comunistas: “Essa inflação galopante era deliberadamente feita pelo governo deposto, para levar você ao desespero e à adesão às violências do comunismo. Os comunistas que dominavam o governo criavam situações de medo e insegurança no país, a fim de levar o Brasil à miséria e ao caos e, assim, imporem a sua ditadura contra o nosso Deus e a nossa liberdade”, alertou o novo e depurado jornal de Ary de Carvalho.

Um editorial de jornal pode se perder no tempo ou pode ganhar a eternidade. Pela irrelevância, vira pó ou papel de embrulho. Pela importância, vira história e ganha o sentido das coisas imanentes. Foi o que aconteceu com um humilde jornaleiro do Tennessee, nascido em meados do Século 19 em Ohio, nos Estados Unidos. Adolph Simon Ochs virou boy, aprendiz de impressor, compositor tipográfico e, por fim, editor do Chattanooga Times, um matutino diário. Aos 20 anos tornou-se dono do jornal. Descendente de judeus alemães emigrados da Bavária, Ochs era filho de um professor culto, fluente em seis idiomas, que apoiou a União na Guerra Civil Americana (1861-1865). Em 1896, aos 38 anos, Ochs foi alertado por um repórter de Nova Iorque que um jornal em decadência da cidade, o quarto em importância na mídia local, estava em crise e poderia ser comprado a preço baixo. Ele conseguiu 75 mil dólares emprestados e comprou o The New York Times, que vendia 9 mil exemplares por dia.

Jornal sem medo ou favor

Com foco na credibilidade, contrariando o tom partidário e o “jornalismo marrom” dos concorrentes, que vendiam reportagens sensacionalistas, o NYT de Ochs apostava nos textos sóbrios e objetivos da Associated Press. A compostura estava expressa desde o início no lema que ele cravou no cabeçalho do jornal: All the News That’s Fit to Print (Todas as notícias que merecem ser impressas). A seriedade venceu e, já na virada do século, o jornal vendia dez vezes mais, com tiragem de 90 mil exemplares. Na década de 1930, quando o país emergia da Grande Depressão, o NYT rodava 466 mil exemplares diários e, aos domingos, 730 mil. Hoje, a aposta do velho Ochs tornou-se o mais importante e influente jornal do mundo, com 876 mil exemplares impressos na semana e 1,3 milhão aos domingos – o segundo maior dos Estados Unidos, atrás apenas do The Wall Street Journal – e 10 milhões de assinaturas digitais. Seu site na internet, com 20 milhões de usuários/mês, é o mais popular dos EUA.

Toda essa história de sucesso do NYT, ao contrário de Zero Hora, começa com um editorial, marca de caráter e integridade que define a determinação e a consistência de um grande jornal. Ao assumir o New York Times em 1896, aos 38 anos, Ochs escreveu um pequeno editorial, Business Announcement, publicado na página 4 da edição de quarta-feira, 19 de agosto, com valores que mantêm o brilho permanente de um farol para guiar a imprensa de qualidade e relevância de todos os tempos: “Será meu sincero objetivo que o The New York Times dê as notícias, todas as notícias, de forma concisa e atraente, numa linguagem que seja parlamentar na boa sociedade, e as divulgue o mais cedo, se não antes, do que for possível. aprendido através de qualquer outro meio confiável; dar a notícia com imparcialidade, sem medo ou favor, independentemente de partido, seita ou interesses envolvidos; fazer das colunas do The New York Times um fórum para a consideração de todas as questões de importância pública e, para esse fim, convidar à discussão inteligente de todos os matizes de opinião”, estabeleceu Adolph Ochs, com a aguda percepção do papel do jornalista na sociedade.

Sem medo ou favor, o NYT decidiu em 1971 confrontar as duas entidades mais poderosas dos Estados Unidos: a Casa Branca do abusivo presidente Richard Nixon e a elite militar do Pentágono, publicando um documento ultrasecreto de 47 volumes, 14 mil páginas que reconheciam os desvios de conduta do governo de Washington e confirmavam as mentiras continuadas de vários presidentes entre 1945 e 1967 sobre a Guerra do Vietnã. Furioso, Nixon mandou bloquear a publicação na justiça e o caso acabou na Suprema Corte, com uma decisão histórica: por 6 votos a 3, os juízes aprovaram a publicação dos Pentagon Papers, baseados na Primeira Emenda da Constituição que garante a liberdade de expressão.

Sem medo ou favor. Um mandamento de dignidade perene, desde sua origem, que mantém uma distância abissal do abjeto editorial de lançamento da ZH, em maio de 1964, quando o jornal nasceu – com medo e prestando favores – para agradar com lisonja o poder militar imposto ao país naqueles dias para derrubar o presidente e a democracia. O foco no jornalismo, meta de toda empresa séria de comunicação, justifica o sucesso consistente do NYT e explica os números nem sempre positivos do confuso projeto empresarial da superestrutura que cerca a ZH com a moldura da RBS. O extravagante projeto de “TikTokation da informação”, revelado por Nelson Sirotsky na sua entrevista para a Coonline, mostra que a organização dos Sirotsky tem soluços conceituais que repercutem gravemente nos resultados.

A raça arrogante dos influencers

Em agosto de 2022, em outra conversa na Coonline, daquela vez não gravada, Nelson Sirotsky apresentou números que mostravam alguma coisa errada. Num Estado com 11 milhões de habitantes como o Rio Grande do Sul, ele tinha como meta 1 milhão de assinantes, um número dez vezes maior do que os 100 mil subscritores que possuía o jornal naquela época. Difícil imaginar que a ZH, favorecida por um surto de súbita relevância jornalística, conseguisse de repente arrebatar 10% da população gaúcha como assinante. O modelo de referência de Sirotsky, então, era o caso de sucesso do New York Times, que no segundo trimestre de 2022 tinha atingido a marca dos 10 milhões de assinaturas digitais – um aumento de 2,5 milhões de assinantes em relação ao mesmo período de 2021. Ou seja, o jornal americano aumentara duas vezes e meia, num único ano, o total de signatários que Nelson imaginava arrebatar, a pau e corda, no mirrado cenário jornalístico dos pampas.

Mergulhado em sua mandrágora mercadológica, Nelson se atrevia a comparar Porto Alegre e Nova Iorque. A capital gaúcha é apenas a 12ª mais populosa do país, com pouco mais de 1,3 milhão de habitantes. A capital de Nova Iorque, centro financeiro mais rico do país mais abonado do mundo (PIB per capita de quase 63 mil dólares), é a cidade mais povoada dos Estados Unidos, com mais de 8 milhões de habitantes – quase alcançando os 11 milhões de todo o Estado do Rio Grande – e mais de 20 milhões de pessoas na região metropolitana da Big Apple. Mergulhado no coração do capitalismo mais resplandecente do planeta, o NYT já ostentava 10 milhões de assinantes, ou seja, 100 vezes mais do que o portfólio da ZH anunciado por Nelson.

Cobrado em 2024 por Vieira da Cunha – o moderador da Coonline – pela meta milionária de assinantes que previa em 2022, Nelson fez uma correção importante. “Dois anos atrás eu falei em 1 milhão de assinantes, mas era para a plataforma digital GZH, que engloba tudo – a Zero Hora digital, a rádio Gaúcha, o streaming e outros conteúdos, muitos de jornalismo… Mas estamos longe daquela meta: temos hoje 130 mil assinantes digitais”. A edição impressa de ZH, que ele chama de print, chegou a ter 200 mil assinantes no início da década de 1990, e hoje resfolega com 40 mil.

Naquele primeiro encontro com a Coonline, Nelson confessou sua fascinação pelo chamados influencers: “Eu quero ter todos os influencers possíveis comigo”, disse Nelson, sem medo ou favor. Era puro deslumbramento por aquela bizarra raça de gente presunçosa, convencida, arrogante, gabola, que se apresenta como pretensa sumidade gerada no berço sem pai nem mãe da internet e se arroga o papel de suposto influenciador pela fama adquirida com a bovina reação de manada das redes sociais. Nelson se mostrava mais interessado em influencers do que em jornalistas, apresentando então os primeiros sintomas alarmantes de contaminação pelo TikTtokation. Na matemática ofuscante desse mundo apalermado, um mega influencer tem pelo menos um milhão de seguidores. Quando o influencer atinge a marca dos 10 milhões ganha a auréola quase santificada de celebrity.

A maior celebridade no Brasil dessa bizarra confraria de fictícios indutores do comportamento das massas é Neymar Júnior, um jogador bissexto atualmente menos conhecido pelos gols e pelos dribles e mais notório pelas baladas, pelas colunas de fofocas, pelas lesões frequentes e pelos filhos que gera em namoradas variadas de sua festiva agenda nas redes sociais. Está ausente dos campos de futebol há um ano, desde uma grave lesão no joelho esquerdo. Apesar da notoriedade ruim que pouco tem a ver com o esporte, Neymar é um ídolo de pé (quebrado) de barro incomparável, com seus 221 milhões de seguidores no Instagram, 63 milhões no Twitter (atual X) e 32 milhões no TikTok – nem todos imbecis, nem sempre idiotas.

O vice-campeão desta lista extravagante de falso resplendor é um certo Whinderson Nunes Batista, que aos 29 anos virou uma eclética e desconcertante mistura de comediante, cantor, ator, rapper, youtuber e pugilista (?). Apesar de sua improvável salada de talentos, Whinderson magnetiza uma bovina legião de 44 milhões de seguidores em seu canal do YouTube. É difícil imaginar que espécie de exemplo, conteúdo ou ensinamento positivo gente controversa e desqualificada como Neymar ou Whinderson – tipos consagrados que Nelson Sirotsky admira – podem transmitir ou repassar para seus influenciáveis admiradores. São astros improváveis e ídolos sublimados daqueles idiotas da aldeia que se amontoaram nas legiões de imbecis e invadiram nossas mesas e vidas, no diagnóstico preciso feito em tempos menos amesquinhados por Umberto Ecco e Millôr Fernandes.

Em outras eras, não tão avançadas na tecnologia e sem a praga das ubíquas redes sociais, o mundo vivia sob a influência legítima de gente de conteúdo, mensagem, discurso, pensamento, exemplo e reflexão atemporal como Mahatma Gandhi, Winston Churchill, Martin Luther King ou Nelson Mandela. Rebaixadas e aliciadas agora pela instantânea ninharia da hiper e frívola conexão de bilhões de pessoas em torno do nada, como Neymar e Whinderson, as legiões se deixam cativar pelo vazio de falsos heróis de baladas, tolas colunas sociais, palcos impregnados de música mesmerizada, ringues de boxe de fancaria, comediantes sem graça e quetais. É o mundo feérico e irrisório do TikTokation, que fascina até gente inteligente e madura como o septuagenário Nelson Sirotsky.

A grosseria histórica de Zero Hora

Antes de perder tempo com irrelevâncias como TikTok, Nelson faria melhor se cuidasse dos bons modos e dos pequenos gestos de elegância que fazem a história e compõem a rotina civilizada até de um pequeno jornal como Zero Hora. O que não aconteceu, por exemplo, na quinta-feira, no último 26 de setembro.

Nesse dia, o jornal prestou uma merecida homenagem ao veterano jornalista esportivo Ruy Carlos Ostermann, que naquele dia completava 90 anos. Dono de um dos mais elegantes textos da crônica de futebol do país, Ruy tem o apelido de “professor”, graças ao texto impecável e o raciocínio treinado de um intelectual que exerceu o magistério com formação em Filosofia pela UFRGS, a universidade federal gaúcha. Autor de dez livros, Ruy teve um abalo sério na saúde com um AVC em 2023. Na mesma edição de quinta-feira ZH abriu espaço para uma história inusitada de um aposentado de 60 anos, Luís Carlei dos Santos, que no curto espaço de 14 anos sobreviveu a seis acidentes vasculares cerebrais (AVC), três acidentes isquêmicos transitórios (AIT) e duas convulsões. Com tanta história de sobrevivência, Carlei escreveu um livro, Uma Segunda Chance.

Zero Hora fez muito bem em registrar, naquele dia, as histórias edificantes de Carlei e Ruy Ostermann. Mas errou feio, e cometeu uma grosseira descortesia, ao ignorar o outro aniversariante daquela magna quinta-feira, por acaso também sobrevivente de um AVC e igualmente autor de livros. Não um, nem dez, mas 84 livros. O porto-alegrense Luís Fernando Verissimo completou 88 anos naquele ilustre 26 de setembro, que ZH ignorou vergonhosamente, embora tenha lembrado a data pelos 90 anos de Ruy Ostermann.

Maior intelectual vivo do Rio Grande do Sul, filho de Erico, Luís Fernando Veríssimo é um nome respeitado no país pelo múltiplo talento como escritor, humorista, cartunista, tradutor, autor de teatro e romancista. Ganhou a imortalidade ao criar personagens inesquecíveis na crônica e no cartum, como a Velhinha de Taubaté, o Analista de Bagé, As Cobras, Ed Mort, a Família Brasil e Dora Avante. E ainda toca saxofone, fazendo parte do Jazz 6, “o menor sexteto do mundo”, com apenas cinco integrantes. Em 1997 ganhou o Prêmio Juca Pato como Intelectual do Ano, concedido pela União Brasileira de Escritores.

Em 1967, aos 31 anos, LFV começou a trabalhar em jornal, justamente na esquecida Zero Hora, no posto de copy desk, ou revisor de texto. Saiu do jornal em 1970 mas voltou em 1975 para a ZH, pela qual cobriu cinco Copas do Mundo, entre os mundiais de 1990 e 2006. Como Carlei e Ruy, LFV sobreviveu a um AVC em janeiro de 2021. As dificuldades motoras o fizeram interromper as crônicas que escrevia também para O Globo e O Estado de S.Paulo.

LFV ainda integra formalmente a equipe de Zero Hora: é um dos 81 colunistas do plantel do jornal, mas relegado a uma foto e uma nota de frieza glacial: “Luís Fernando Veríssimo. Escritor, humorista, cartunista, tradutor, roteirista de televisão, autor de teatro e romancista. Deixou de escrever neste espaço em 2017, quando se afastou por problemas de saúde”. Nada disso justifica o cruel esquecimento do jornal na data de seu aniversário, seja por mera incompetência, grave falha editorial ou imperdoável birra pessoal com um funcionário ilustre da RBS e glória da cultura gaúcha e brasileira. Uma falha imperdoável, Nelson, que não sobrevive ao TikTokation, nem cabe numa explicação rápida, sucinta e objetiva…

Na longa e esclarecedora entrevista à Coonline, Nelson deve ter notado o ensurdecedor silêncio dos dois mais veteranos jornalistas da bancada de perguntadores: Carlos Bastos, 90 anos, e Elmar Bones, 80, são nomes lendários da imprensa gaúcha e brasileira. No início da década de 1970, Bastos era o chefe de redação da Zero Hora, num tempo em que o jornal dava mais espaço e atribuía mais importância a jornalistas do que a colunistas. Bones, membro da equipe fundadora da revista Veja, foi o talentoso editor do bravo Coojornal, o mensário da Cooperativa de Jornalistas de Porto Alegre que sucumbiu à pressão dos generais da ditadura, no início da década de 1980. Um e outro, estranhamente, permaneceram calados durante a hora e meia de conversa com o dono da RBS, certamente desconcertados com a exótica visão TikTokation de jornalismo exibida pelo mais poderoso executivo de comunicação do sul do país. Bastos e Bones – que são jornalistas, não colunistas – não se dignaram a uma única pergunta – e o problema, ali, não era dos perguntadores, mas do perguntado.

Vendo e revendo o vídeo da Coonline e lendo este texto, agora, ambos também devem concordar num ponto inquestionável:

Nelson Pacheco Sirotsky é, de fato, uma grande figura humana!

(*)  Jornalista, é autor de Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios – uma reportagem dos tempos da ditadura (ed. L&PM, Porto Alegre, 2008) e foi consultor da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.