6:29São Francisco e o novo paradigma, ou: “E se as crianças soubessem algo que nós já esquecemos?”

por Luca Rischbieter

Estamos em 04 de outubro de 2024, Dia de São Francisco, e lembrei-me de um artigo que escrevi em 1998.Localizei-o e dei uma leve  atualizada, aí está:

Logo no começo da Bíblia (Gênese, 1.28), depois da criação de Adão e Eva, Deus orienta-os:

Frutificai e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra.

Um dos cartoons favoritos entre os ecologistas mostra um homenzinho no topo de uma montanha, no meio da Terra poluída e abarrotada de gente; ele olha para cima e grita:

– Pronto Deus, e agora?

Já faz parte do senso comum, já se ensina nas escolas que os homens estão passando dos limites, e que o paradigma do “crescei e multiplicai-vos” está esgotado. A raça humana vive dentro da natureza e da atmosfera terrestres e, se não aprender um outro modo de agir em relação a ela, irá provocar uma catástrofe. A Natureza – principalmente as bactérias – poderá sobreviver, o homem não. Fica a pergunta, mais importante hoje do que quando adentramos o século XXI: e agora?

Em uma obra lançada em 1996, um importante cientista ocidental, Albert Jacquard (1925 – 2013), buscou inspiração em São Francisco para pensar na resposta. Jacquard, que foi por décadas o mais conhecido professor de Genética da França, lembra, no livro de seu espanto ao conhecer as ideias do mais bom astral dos santos:

Ora, esse personagem reputado sério pois que canonizado, pronunciava palavras aparentemente absurdas; falava de sua “pequena irmã água”. Que alargasse o número de seus parentes aos animais próximos podia, apesar de tudo, passar por razoável; mas incluir entre eles a água não podia ser senão uma imagem poética sem qualquer correspondência real.[i]

Jacquard, há 30 anos atrás, já percebe que São Francisco tinha acertado na mosca:

Não é apenas a água que Francisco integra na sua família, mas todas as criaturas, os animais, o Sol, a Lua, o fogo, o vento”. Ao fazer isto, ele “exprime exatamente a visão dos astrofísicos modernos que descrevem os homens como “poeira de estrelas”.[ii]

Os cientistas derivam um imenso prazer da noção de que cada atomozinho nosso –  do Sol, Terra, Lua, meu, seu, de sua casa, seu carro – foi fabricado, cozinhado no coração de estrelas que já morreram há bilhões de anos.

Aos poucos, embora absurdamente devagar, essas e outras belas ideias nos dão uma nova visão do universo, como um lugar muito mais interessante, explosivo e hospitaleiro do que o universo frio e mecânico que nos mostraram na escola. Não é a toa que dois importantes livros lançados naquela época por cientistas respeitáveis, tinham o mesmo e revigorante título: Em Casa no Universo.[iii]

A renovação da ciência nos oferece novos e belos modelos em que o homem está integrado ao Universo e à Terra. Mas, talvez alguém pergunte: “tudo bem, mas como podemos ensinar estas coisas para as crianças?”.

A pergunta me faz pensar numa anedota sobre Picasso. Diz  a lenda que ele estava sentado numa calçada de Paris, pintando, quando uma senhora – segurando o filho pequeno pela mão – parou, fez uma careta e disse:

– O senhor me perdoe, mas isso daí  o meu filho faz!

Reza a lenda que Picasso teria respondido:

– Ele, sim, a senhora, não…

Para Picasso, e não só pra ele, as crianças estão mais próximas de verdades que só artistas, místicos e poetas ainda percebem.

Alguns tipos de substâncias alucinógenas parecem ser capazes de produzir estados de mente parecidos. Assim, por exemplo, o grande e respeitável químico suíço Albert Hoffmann (1906 – 2008), descobridor, por acaso, do LSD, comparava suas “viagens” de “ácido” às lembranças de momentos mágicos de sua infância, e afirmava:

As crianças ainda vivem no Paraíso porque ainda vivem na verdade. Elas ainda percebem o mundo como ele é, ou seja, maravilhoso.[iv]

A ciência, que segue o caminho mais sistemático e chato para a verdade, levou muito mais tempo, mas também está chegando à uma visão do mundo como um lugar maravilhosamente complexo e onde tudo está inter-relacionado.

Essa discussão abre algumas perspectivas para a pedagogia, vejam só:

Será que, em vez de “ensinar as crianças”, o problema não seria mais como conservar o que nós perdemos, ao aprendermos ideias erradas?

Que espécie de pedagogia seria capaz de preservar e de cultivar as qualidades da infância que nós perdemos?

O que podemos aprender com as crianças?

Como levar estas questões em conta, ao conceber o trabalho educativo, especialmente na educação infantil e no ensino fundamental?

Essas e outras perguntas ficam suspensas, é não é de hoje, como diria São Francisco, em nosso irmão, o ar…


  • [i] Albert Jacquard. “Ensaios Sobre a Pobreza”, Lisboa, Publicações Europa-América, 1996.
  • [ii] Ibid., 37.
  • [iii]  Um dos  “At Home in the Universe” (N.Y., Oxford, 1995)  foi escrito por Stuart Kauffman, que estuda os processos de auto-organização em computadores e no mundo. O outro  “At Home in the Universe” (N.Y., AIP Press, 1996) é de John A. Wheeler, reconhecidamente um dos maiores físicos do século XX.
  • [iv]  Albert Hoffmann. “Insight/ Outlook”. Atlanta, Humanics New Age, 1989. p. xvii.

 

 

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