por Muniz Sodré
A cantora tinha 65 milhões de seguidores, perdeu 200 mil, mas, na ótica do terreiro, livrou-se de um encosto
No deserto moral do digitalismo, impera a lei dos números. Cem vale menos que mil, que vale menos que um milhão, independente da qualidade do fato. Uma mentira óbvia compartilhada por milhões parece verdade. Um político pode ter popularidade numérica positiva, embora com qualificações morais negativas. Isso vai de mídia e rede social ao cotidiano vivido.
Recente é o episódio da cantora, compositora e empresária Anitta, com refluxo de milhares de seguidores devido a um clipe em terreiro afro. Dissipando temores de doença grave, ela homenageou ritualmente, vestida de palha, a divindade da doença e da cura. A mesma, aliás, que inspirou a coreógrafa Deborah Colker no espetáculo “Cura”. Forte a intolerância, mais forte foi a confirmação por Anitta de sua crença. Os números deram foco à notícia: tinha 65 milhões, perdeu 200 mil. Na ótica do terreiro, entretanto, livrou-se de um encosto, ganhou.
Ao olhar ligeiro, a modernidade das redes seria incompatível com a tradição afro. Achille Mbembe pensa o contrário: “a África era digital antes do digital” (em “Animismo e Visceralidade”). Para o filósofo, nos mitos africanos se evidencia a centralidade dos fenômenos de migração e conexão, isto é, a criação de espaço por circulação e mobilidade, assim como plasticidade na organização social frente ao novo e ao inédito. A mesma da cognição e do cálculo. Mbembe: “O imaginário dos números, a organização em redes, as maneiras de recortar o real (…) todas essas estruturas fenomenológicas eram, ao contrário do que se acreditava, extremamente propícias à inovação”.
Anitta aporta ao show-business uma réplica desse paradigma. Corpo à frente, com a aura africana da Vênus Calipígia revestindo seu bundalelê cênico, conduzida pelo orixá Logunede, ela abriu espaço internacional. Um fenômeno de mobilidade: a partir do subúrbio humilde, digeriu inglês, espanhol, francês e as manhas do marketing para encarná-las em uma corporalidade móvel, transfronteiras. Não só voz, todo um corpo migrante, com mensagem de partida: “Prepara!”
Na arena do espetáculo, há fenômenos análogos, em que o corpo ocupa o fundamento do imaginário de uma comunidade percebida como núcleo vital, ao modo dos sistemas antigos de pensamento africano, em que as relações de energia eram somáticas. Hoje, corpos racializados (Anitta é um desses) reencontram na comunidade afro-litúrgica a potência subjetiva inscrita no tempo ancestral. Nenhum identitarismo, mas força vital, agora também impelida por algoritmos. Para além da lei autista do cálculo, o mundo digital pode ser apreendido, quem sabe, como teatro próprio, como mítico portal da vez.