por Mário Montanha Teixeira Filho
Nos meus tempos de sindicalista, Belo Horizonte era um destino frequente. A capital mineira foi a sede informal de uma articulação de sindicatos de vários Estados para debater o Poder Judiciário brasileiro. As reuniões envolviam gente do Sul, de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, a que se juntavam, de vez em quando, camaradas de São Paulo, Maranhão, Pernambuco e Pará (pensando bem, não foi pouco).
Conseguimos realizar um bom trabalho. Nossas atividades diárias de preparação duravam muitas horas, e quase sempre terminavam na Cantina do Lucas, localizada numa galeria do centro de Belo Horizonte, onde atravessávamos madrugadas em discussões intermináveis sobre política, futebol, poesia, comunicação e o que viesse pela frente.
A Cantina do Lucas é um ponto de encontro tradicionalíssimo, patrimônio cultural dos belo-horizontinos. Quem ajudou a dar fama ao lugar foi o garçom Olympio, que trabalhou lá durante muito tempo, até os seus oitenta e dois anos. Pois eu conheci o Velho, como também era chamado. Com o que lhe sobrou de agilidade, ele circulava pelas mesas, anotava pedidos e carregava pratos com as duas mãos trêmulas. Na lapela do paletó branco e engomado, um distintivo de metal com uma foice e um martelo entrelaçados.
Sim, o Olympio era comunista das antigas. Nos anos de chumbo, dava uma espécie de proteção aos bebuns esquerdistas que afogavam as mágoas ou maldiziam a quartelada de 1964 e o AI-5. Uma figura.
Então. Estávamos no Lucas, numa noite do início dos anos 2000, quando dois homens, um segurando o outro, andando em ziguezague, se aproximaram da nossa mesa, já bastante povoada de garrafas e copos, e pararam. Um breve silêncio veio em seguida. E eles cambaleando, quase sem voz, até que, olhos na minha direção, sussurraram uma frase esquisita:
– Nosa… Ichh… Fxprt… Sspinossssa!
Depois de um grande esforço hermenêutico, deduzi que eles se referiam a Espinosa, o holandês de sangue lusitano que viveu no século XVII. Engatei:
– O filósofo?
E eles:
– Ssq… Sspinossssa…. Norchhhhhhminassss!
Tentando decifrar, fui adiante, no chute:
– Espinosa, uma cidade no norte de Minas? É isso?
Não é que eu estava certo? Os dois me abraçaram e abriram sorrisos de cumplicidade. Imediatamente, nos tornamos amigos de longa data. Puxei mais duas cadeiras e teve início uma conversa animada sobre um lugar cuja existência eu desconhecia até então. Não sei dizer como o diálogo se desenrolou, mas sei que chegou a um ponto de entusiasmo que não tinha mais volta. Quando percebi, Espinosa me era muito familiar, eu costumava visitá-la nas minhas férias de estudante e havia namorado na praça central da cidade. Comecei a ficar incomodado com tanta lorota, com a mistura entre sonho e realidade que não tinha fim. Mais um pouco, eu seria nomeado, ali mesmo, naquele bar, cidadão honorário de Espinosa!
– Viva Espinosa! – gritamos várias vezes, saudando as minhas lembranças do norte de Minas e as histórias absurdas que nossas mentes um tanto perturbadas criavam.
A prosa mudou de rumo quando, ao ser depositada mais uma garrafa na nossa frente, um dos convivas – não me lembro como se chamavam, mas sei que eram dois nomes parecidos, uma dupla de irmãos – disparou:
– João Leite, culpado!
E o outro:
– Vendido! Filho da puta!
O assunto, agora, tinha a ver com a rivalidade entre Atlético Mineiro e Flamengo, iniciada na decisão do Campeonato Brasileiro de 1980. O Flamengo ganhou a disputa em que a igualdade lhe daria o título: 1×0 pro Galo, em Minas, e 3×2 pro Mengo, no Rio.
Mas a polêmica revisitada naquela mesa tratava de outro campeonato, a Copa Libertadores do ano seguinte. Na primeira fase, os rivais brasileiros buscavam classificação para a única vaga do seu grupo. Foram dois jogos e dois empates pelo mesmo placar de 2×2. Acontece que João Leite, o (bom) goleiro do Galo, deu uma pixotada feia no Maracanã. Veio um cruzamento do adversário, ele bateu roupa e largou a bola nos pés de Nunes, que não perdoou e fez um dos gols do jogo. Se não houvesse a falha e o resultado fosse a vitória do Galo, não teria existido a terceira partida, a que nunca terminou.
E o “não terminou” veio da pior maneira possível. Tão estranho quanto o desfecho dessa aventura foi o gramado do Serra Dourada, em Goiânia, que recebeu os times brasileiros num estilo vanguardista, pintado de contrastes que atrapalhavam a visão de quem tentava acompanhar os lances. Mas não foi isso que estragou tudo. Foi o José Roberto Wright, dono do apito, que resolveu expulsar Reinaldo, que fez uma falta corriqueira no Zico. Na sequência, outros jogadores mineiros receberam o cartão vermelho, até que João Leite caiu, simulando uma contusão. Sem quórum para fazer o jogo seguir, Wright deu os trabalhos por encerrados. No tapetão, o 0x0 classificou o Flamengo, que depois ganhou a Libertadores e foi campeão mundial contra o Liverpool.
No meio de tanta lambança, sobrou para o João Leite. Foi ele, na opinião dos nossos atleticanos inconformados, o único responsável pela confusão – o que, evidentemente, é um exagero. Mas não tinha jeito. Eles estavam convencidos: João Leite, culpado! Insistentes, repetiam o veredito implacável, como se tudo tivesse acontecido no último fim de semana, e não vinte anos antes.
Foi assim até que um dos irmãos se levantou, cambaleante, e puxou o outro, convidando-o a ir embora:
– Ele não está bem – balbuciou.
E foram na direção da rua, sem que pudéssemos identificar quem amparava quem naquela altura. Um de nós, que ainda estava relativamente sóbrio, pensou em acompanhar a dupla, mas foi contido pelo Olympio:
– Eles moram aqui do lado, já estão em casa. Amanhã, tudo de novo, eles vêm aqui pra avacalhar o João Leite, o frangueiro eterno.
Fechamos a conta e também fomos embora. Nunca mais voltei lá. O Velho morreu algum tempo depois, em 2003, com oitenta e quatro anos. Sobre as lembranças do norte de Minas, rabisquei um pequeno poema, que perdi. Ficou o esboço, o fio da história que não aconteceu: “Morena formosa / que eu amei / na praça central / de Espinosa”.
Outro dia, ao fuçar as redes sociais, dei com uma notícia de 2018 sobre os bares de Belo Horizonte que apoiaram a onda reacionária que fez de Jair Bolsonaro o presidente do país. Para tristeza geral, a Cantina do Lucas estava entre os patrocinadores da barbárie terraplanista.
Fiquei com uma bruta saudade, então. Saudade do bar que não existe mais (o que sobrevive naquele espaço é um arremedo do Lucas). E do Olympio e seu paletó branco e engomado. E da Espinosa que eu nem sabia existir. E do Reinaldo e do Zico. E de mim.