8:06Quando o Judiciário é engrandecido

por Célio Heitor Guimarães

Na coluna passada, com grande tristeza, fui obrigado a dar ao leitor um exemplo de um mau juiz, que denigre a imagem do Judiciário, causa um enorme prejuízo ao erário e acaba com a confiança da população nas instituições públicas, particularmente naquelas que abrigam os togados.

Hoje, sinto-me na obrigação de oferecer um contraponto, relembrando a figura de um jurista de escol, um jurista que engrandeceu o Judiciário brasileiro. Desses que estão se tornando cada vez mais raros. Refiro-me ao ministro Milton Luiz Pereira, que lamentavelmente já nos deixou.

Paulista de nascimento, Milton tornou-se desde logo paranaense. Aqui estudou, aqui formou-se pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, aqui foi locutor de rádio, aqui foi advogado, aqui foi professor – rigoroso com os alunos e consigo mesmo, e aqui foi juiz federal, até chegar ao Superior Tribunal de Justiça.

Como ministro do STJ, Milton Luiz julgava, em certa ocasião, a questão de um ex-gerente bancário, Waldemar Cardoso de Sá, do Rio de Janeiro, que, em maio de 1977, durante um assalto à sua agência bancária, foi vítima de uma bala perdida e ficou paraplégico.

O precatório cobrado por Waldemar das autoridades fluminenses foi pré-anotado em maio de 1996 – dezenove anos depois que a má pontaria da polícia carioca interrompeu a atividade do então promissor bancário e o atirou em uma cadeira de rodas.

Até 2001, porém, o governo do Rio – como, de resto, acontece com todos os governos estaduais, inclusive o do Paraná – não havia definido a data da quitação.

Waldemar, com amparo na lei, solicitou a intervenção no Estado do Rio de Janeiro por descumprimento de ordem judicial. O pedido foi deferido pelo Tribunal de Justiça fluminense, mas, como sói acontecer, o Estado recorreu ao Superior Tribunal de Justiça, em Brasília. Alegou falta de recursos e a existência de algumas dúvidas sobre a exatidão do quantum devido. Tudo igual a o que tantas vezes já ocorreu aqui mesmo na Terra dos Pinheirais.

Só que, no STJ, o Estado relapso, devedor e mau-pagador bateu de frente com o paranaense Milton Luiz Pereira.

“Neste País” – sentenciou o ministro –, “credor da Fazenda Pública que não tiver vida longa, levará o seu crédito para o além. É um sofredor numa verdadeira fila de pedintes, a despeito de favorecido pelas leis constitucionais, orçamentária e por decisão judicial. Teve a sua espinha dorsal destruída por um tiro disparado por engano por um policial do Estado e hoje, com quase 70 anos, vive por razões que nem mesmo o próprio sabe, diante da carga estupenda de sofrimentos”.    

É isso aí: credores do Estado, neste país, formam um batalhão de pedintes, humilhados e maltratados, como se fossem párias gananciosos, embora tenham a seu favor a lei e reiteradas decisões judiciais. Agora, experimente ficar devendo para o Estado…

Milton Luiz Pereira votou favorável à intervenção federal no Rio de Janeiro, como única maneira para garantir o pagamento do precatório em favor do ex-bancário Waldemar. E, como fecho, evocou o pensador André Malraux:

“A esperança dos homens é a sua razão de viver e morrer. Desde a tragédia ocorrida há quase 25 anos, um brasileiro não esmoreceu a sua confiança no Judiciário, força do seu viver para não morrer. Não pode ser desapontado”.

Como seria bom se existissem vários outros Milton Luiz Pereira no Judiciário brasileiro! Infelizmente, isso está longe de acontecer.

 

2 ideias sobre “Quando o Judiciário é engrandecido

  1. Marcus pereira

    Parabéns pela coluna e assunto; e Muito obrigado pela lembrança do dr. Milton, cujas condutas nos inspiram hoje a manter ativos e elevados os ideais do instituto que leva seu nome (www.imlp.org.br).

  2. Claudio Telles

    Prezado Célio,
    Tocado pela feliz lembrança do saudoso Dr. Milton Luiz Pereira me animei a trocar reminiscências sobre aquele que escolhi como farol da minha vida pública. Tive a felicidade de ser aluno do “Miltão” (assim o chamávamos entre nós na Faculdade de Direito da Curitiba) e a honra de ter ficado por duas vezes para exame final na sua matéria onde ficamos frente a frente, já que o exame era oral, para uma “sabatina”. Me orgulho em dizer que após ter passado pelo primeiro exame, no segundo fui voluntário para abrir a sessão já que me sentia bastante à vontade pela percepção anterior de que o professor tinha a destreza de me fazer fluir meus conhecimentos. Devo dizer que o clima entre os demais colegas era de puro terror ante o iminente enfrentamento com o mais temido professor da faculdade. Seriam necessárias horas e horas para relatar tantas lembranças, pelo que vou buscar a síntese em algumas que, acredito, mais traduzem a minha profunda admiração pelo meu Mestre.
    Dr. Milton teve um único veículo na vida, um “fusquinha”, se não me engano verde, que lhe foi presenteado pelo povo de Campo Mourão ao fim de seu mandato como prefeito daquela cidade, em 1.967, como reconhecimento pela sua administração séria, competente e abnegada. Já como diretor do Forum Federal em Curitiba, o professor não utilizava o veículo de representação a que tinha direito e, para nosso pasmar, nem o seu fusquinha, para os seus trajetos diários, motivando um colega a perguntar-lhe se transitava a pé ou de ônibus e por que não usava o veiculo oficial. A resposta foi dilacerante : um juiz tinha que tinha estar em contato constante com o povo para entender o que era o anseio pela justiça e nada melhor do que o ônibus para observar o semblante e ouvir os comentários do povo sobre a vida cotidiana de forma a orientar as suas decisões como magistrado. A propósito de suas decisões, ele nos dizia, me recordo, referir-se a elas quando de suas orações diárias antes de deitar-se ( era muito religioso) pedindo a Deus, que o abençoasse quando acertadas e que o perdoasse e iluminasse quando erradas ou equivocadas.
    Quando de nossa formatura, na peroração de paraninfo, que foi relativamente extensa, os presentes o ouviram com atenção incomum para tais eventos, por vezes irrompendo em aplausos que o obrigavam a aguardar para retomar a palavra. Já ao final, procedeu com o gesto que viria a marcar minha vida pessoal e profissional, virou-se do púlpito em nossa direção e apontando para nós bradou: “Proíbo-lhes de se acomodarem”. Em julho de1.984 o país vivia o início da transição política e os bacharéis do direito seriam imprescindíveis, a seu ver, para a definição dos rumos do país. Não foi um simples discurso, ao final a plateia toda em pé explodiu em longos e efusivos aplausos. O dedo apontado e a proibição do “Miltão” nunca me deram sossego e tive a oportunidade de relatar-lhe isso e a influência dos seus princípios e suas palavras na minha carreira policial quando do jantar de 20 anos de formatura, nosso ultimo contato.
    Peço a sua licença para dizer que Professor Doutor Milton Luis Pereira não é simplesmente uma referencia para o judiciário, mas um marco de hombridade pública em todas as esferas de poder e instituições por onde passou e que influenciou alunos e alunas, muitos dos quais abraçaram a causa pública, com seus ensinamentos e exemplos que os marcaram por toda a vida e os levaram a propagar um legado de dignidade e humanidade.
    O “Miltão” não era de de muita conversa com os alunos, mas não se negava a algumas atenciosas palavras após as aulas e conquistava a todos com a sua seriedade e humildade. Com todo o temor que inicialmente inspirava, foi ao final lembrado e eleito como paraninfo da nossa Turma com nosso profundo sentimento de reconhecimento, agradecimento e honradez por sermos paraninfados por MILTON LUIS PEREIRA, o Professor, o Jurista, o Político, o Administrador Público, o Homem, ou simplesmente o Miltão , o Temido. Os demais que morram de inveja, passei pelo Miltão e ele foi meu Paraninfo !!!!
    O Paraná tem um débito enorme para com uma das suas principais figuras públicas. Eu busquei quitar o meu carreira afora, mas, caramba, ainda acho que aquele dedo está apontando para mim.
    Era isso. Obrigado por me trazer a lembrança tão querida do meu Professor.

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