por Elio Gaspari
Patranhas na política são uma coisa, na saúde, outra
É possível que nos próximos meses o Supremo Tribunal Federal e o Congresso retomem a questão do lixo eletrônico que circula na internet através das grandes empresas de tecnologia. Quando esse assunto estava na Câmara, as plataformas defenderam-se alegando que o projeto abria uma porta para a censura de ideias. Não abria, mas a cautela adiou uma decisão.
Enquanto a discussão girou em torno da censura de ideias ela tinha algo de abstrato. Agora vê-se que o lixo vai além, enganando consumidores e prejudicando empresas. Uma única operadora de planos de saúde, a Amil, listou 231 casos de anúncios irregulares na rede em apenas seis meses. Num aspecto, prometem reembolsos impossíveis. Noutros, e são milhares, oferecem curas milagrosas e juventude eterna.
As big techs defendem-se dizendo que procuram filtrar o que levam à rede e que cumprem as decisões da Justiça quando ela determina a retirada dos materiais. É pouco.
O que sempre esteve em questão foi a cooperação das big techs para limpar a parte da rede que está sob seu domínio. Há anos elas oscilam entre a arrogância e o descaso. Quando a Justiça manda, elas cumprem. Só faltava que não cumprissem. Os danos empresariais provocados pelas mentiras sugerem que o Supremo Tribunal possa tratar desse lixo de maneira diferente. Se é difícil quantificar o dano derivado de uma mentira política, isso é fácil no caso das patranhas empresariais.
A mão de obra necessária para retirar uma mentira da rede não pode ser paga pela vítima em tempo e contratação de advogados. Além disso, quando a mentira está associada ao estímulo de uma fraude, o caso é outro. A guilda das operadoras de saúde estima que os golpes lhe custam R$ 3,5 bilhões. Sabendo-se que os golpistas se valem também de outros meios, o prejuízo que passa pelas big techs deve ficar abaixo disso.
Até hoje a Justiça tem agido para retirar o lixo. Pode-se ir além. Basta que haja uma multa. Afinal, se um vizinho deixa suas porcarias na porta do outro e reincide, alguma coisa ele terá que pagar. Como as big techs jogam com o tempo a seu favor, basta inverter o jogo. Quanto mais elas demorarem para atender à reclamação da vítima, maior a multa. A multa não precisa ser alta, desde que ela esteja relacionada à demora nos atendimentos da reclamação, a partir do momento em que é comunicada ao hospedeiro da mentira.
Médicos e advogados têm suas propagandas reguladas. Não faz sentido que as plataformas aceitem anúncios disfarçados de aconselhamento. Pode-se argumentar que é difícil demarcar a linha que separa a informação da enganação. Nessa hora vale o ensinamento do juiz americano Potter Stewart: “Eu não sei definir o que é pornografia, mas quando a vejo, reconheço-a.”
Se as big techs aceitarem esta lição elementar, o problema começará a ser resolvido.
Cobrando-se uma multa pela hospedagem de mentiras que causam prejuízos a empresas e divulgando-se a quantidade de infrações cometidas por cada big tech, entra luz na discussão.
Afinal de contas, a divulgação, pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, das multas aplicadas às operadoras de planos é um meio eficaz de controle das malfeitorias que acontecem nesse mercado.
*Publicado na Folha de S.Paulo