11:06O TALK SHOW

de Carlos Castelo
 
Micropeça em um ato

Na sala de uma modesta residência, um sexagenário, a esposa cinquentona e dois filhos – moça e rapaz – estão acabando de regular o celular para uma filmagem caseira. O pai está sentado no sofá ao lado da mulher. O filho registra a cena. Ao sinal de mão do rapaz, a mãe começa um diálogo com o marido.
– Eu estou conversando hoje aqui com o Praxedes Oliveira. Como vai você?
– Vou bem, Matilde, tudo certo.
– É um prazer bater esse papo contigo no meu talk show, viu?- O prazer é todo meu.
– Bom, o que você faz, Praxedes. Pode nos contar um pouco?
– Sou aposentado. Trabalhei durante 47 anos como representante comercial de uma fábrica de fechaduras.
–  E agora?
– Estou em casa.
– Puxa, mas que coisa. Esse tempo todo vendendo fechaduras, é?
– Não só fechaduras, Matilde, mas chaves, cadeados, linguetas, maçanetas de porta.
– Incrível.
– E tinha alguma fechadura que você gostava mais de vender?
– Ah, a que eu mais gostava de comercializar era a 4789-C, bilingueta, belíssimo produto.
– Sim! Você teria uma delas para mostrar para a gente?
– Olha, é esta aqui, note só que beleza de produto…
(Aplausos dos filhos)
– Parece mesmo, além de muito robusta, extremamente segura, hein?
– Mas com toda certeza, Matilde. Trancou, não entra mais nada. Era como eu dizia para os clientes: com a 4789-C bilingueta, não passa nem micróbio.
(Gargalhadas dos filhos)
– Hahahaha, muito boa, Praxedes. Parece que você tem um certo dom para criar os slogans das fechaduras também, não
– Não, não. Isso era apenas uma brincadeira lá com os fregueses. Longe de mim ter esse talento para criação.
– Como é modesto o Praxedes! Vamos dar uma salva de palmas a essa humildade tão bonita!
(Palmas prolongadas e assobios dos filhos)
– Obrigado.
– Você merece, Praxedes. Uma bela trajetória a sua, viu?
– Valeu.
– Agora, o questionário. Pra responder de bate-pronto…
– Sim, sim, a melhor parte.
– Um desejo.
– Participar de um reality show só com vendedores de fechaduras.
– Um medo.
– Ficar trancado no banheiro.
– Uma lembrança.
– A Convención de Vendedores de Cerraduras Paraguayos, em 1982.
– Um sonho.
– Participar de um talk show, de verdade, na televisão.
– E o meu talk show não vale nada, Xedes?
– Claro que vale, meu bem, mas sonho é sonho.
– Desliga a câmera da porcaria desse celular, Lúcio!
– Mas Matilde, espera aí, eu…
– Solta meu braço!
– Eu…
– Que eu o quê! A gente faz as vontades de uma pessoa por toda uma vida pra ouvir que o sonho dela é ser entrevistado num talk show… só que na televisão?
– O seu estava ótimo, eu juro.
– Ingratidão, ingratidão.
– Espera, Matilde, eu não ia entrevistar você agora?
– Lúcio, aperta o stop dessa bosta de celular. Agora!

(Breu. Cai o pano).

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