por Angela Alonso, na FSP
Religiosização (com perdão do neologismo) da política só interessa a um lado; Direita se move desenvolta nesse léxico
O pastor pregava numa igreja Batista: “Neemias agiu. Se nós queremos mudar o sistema, precisamos orar, agir e apoiar medidas contra a corrupção”.
Era 2015, e Neemias foi do Velho Testamento ao sermão para justificar o avanço religioso sobre a política. Ao murar a cidade sagrada de Jerusalém, servira a dois senhores, o estado terreno (governou a Judeia) e o reino divino. Quem buscou o exemplo foi Deltan Dallagnon, que tinha 35 anos e uma missão.
Como a missão lava-jatista se cumpriu, é prudente atentar para suas profecias.
A mais recente veio em reação ao tuíste digno das narrativas bíblicas, quando o moralizador foi pego de moral curta. Legítima ou espúria, a cassação deu-lhe outro púlpito, o de perseguido.
Em meio a cartazes de “Perseguição política não é justiça”, discursou no estilo em que fez carreira, com a Bíblia e a Constituição confundidas.
A retórica cristã tem sido seu trunfo na trajetória curta entre a obscuridade paranaense e a luminosidade de Brasília. Daí equiparar sua sina às de José e Daniel.
O primeiro, vendido pelos irmãos como escravo, permitiu-lhe sintonizar com o grande mote contemporâneo da direita, o da primazia da liberdade.
O segundo lhe deu a camisa do crente, salvo da pena injusta pelo poder da fé. Trata-se de Daniel, acusado de traição ao rei por orar a Deus. O soberano pôs a divindade concorrente à prova, trancando o infiel numa cova com leões. O salvamento foi por graça divina.
Já os acusadores provaram a inclemência terrena, devorados pelos felinos. Uma mensagem de revanche: Dallagnol está na cova, mas quando sair, condenará os inimigos ao suplício.
À diferença de Daniel, vai comboiado à vingança. O protesto contra sua cassação ajuntou do 03 à deputada de tiara de florzinha, a que votou contra a equiparação salarial entre os gêneros e insinuou usar metralhadora contra Lula.
O ato de desagravo exibiu uma arca da aliança, que o pastor chamou de “a direita unida contra a arbitrariedade”. Nela cabem muitos pecadores.
A cruzada moral é para salvar um mundo corrompido desde a expulsão do Paraíso.
Exemplos religiosos e ações políticas se embaralham, enraizando a moralidade pública em uma moral privada particular, de tipo religioso. Avoca o monopólio da honra e da correção à sua igreja política, já os adversários seriam todos corrompidos.
Os últimos anos mostraram o poder político desta retórica moralizadora, que opõe impolutos e conspurcados. Suscitou nada menos que paixão nacional. Por isso o “tombo”, palavra do caído, serviu para regar o terreno laico da política partidária com os valores de uma seita.
Dallagnol, como Daniel, vive uma provação, mas promete voltar fortalecido, graças à fé em Deus e nas “344 mil vozes caladas”, as dos eleitores que o sufragaram. Não na Constituição.
A língua religiosa da oposição acabou na boca do governo, que devia ser laico. O ministro da Justiça se saiu com o evangelho de Mateus: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados!”
Ao adotar a linguagem do inimigo, aceita-se o debate político nos seus termos. E se cai na armadilha de falar mais de moral que dos problemas do país.
A religiosização (com perdão do neologismo) da política só interessa a um lado. A direita se move desenvolta nesse léxico. E, ao fundamentar seus atos em citações sagradas, prossegue a política nos termos de seu velho Messias.
Então tá combinado, viva o faroeste à brasileira, os ladrões, corruptos, são as vítimas, os procuradores os juízes são os algozes. Vão pra pqp todos vcs