por Muniz Sodré
A robotização das condutas começa a tornar-se a consciência objetiva das elites sem território e da esfera popular
Ninguém indagou até agora sobre o sinistro porquê de executivos de plataformas digitais resistirem a repassar às autoridades dados de terroristas atuantes nas redes. A palavra terror não é exagero retórico. É o acréscimo de medo que faz tremer a consciência cidadã, em qualquer região do mundo. Aqui, entre a mentira danosa e a passagem ao ato físico (agressões, ataques a escolas) há um corpo patriarcal-colonial na busca terrorista de uma descarga orgástica que o reconcilie consigo mesmo. O algoritmo faz vibrar juntos corporalidade e sensório.
Esse é o corpo do sujeito da consciência neoliberal atravessado por pulsões de desumanização. Esta é palavra a ser levada mais a sério nas análises recorrentes sobre os efeitos colaterais de redes e plataformas: um grau a mais no avanço do incivilismo como marca de estiolamento da democracia liberal. Até agora, o humano era irrecorrível valor civilizatório.
Vale lembrar, entretanto, que humanidade é ideia renascentista, consentânea ao domínio europeu em escala planetária. Era fachada ideológica para a legitimação da pilhagem dos mercados do Sudeste Asiático, dos metais preciosos nas Américas e da mão de obra na África, consolidada na medida em que sustenta o modo como omotoris europeus conhecem a si mesmos: “homens plenamente humanos”. Himmler, o grande mentor dos campos de extermínio alemães, não fazia objeção à sorte das vítimas, mas se preocupava com a descoberta de um método humano de matar.
O humanitarismo cristão e filosófico escorre por linhas infindáveis de sublimação, mas jamais contemplou, com um humanismo prático, o destino planetário. Agora, em meio à violência exponencial nas guerras e nas cidades, irrompe o brutalismo das tecnologias de ponta, cujo horizonte é o menos humano. Serão excelsos os ganhos científicos e industriais da inteligência artificial, mas o robô, corpo materializado do capital, não tem pai, nem mãe, nem deus.
Aos poucos, a robotização das rotinas e das condutas começa a tornar-se a consciência objetiva das elites sem território, assim como da esfera popular. Além desse, é difícil encontrar parâmetro para avaliar o motorista que debochava (“Faz um L“) da agonia do adolescente mortalmente atropelado. Ou então, para o general robotizado entre os vândalos do palácio. Senão, os próprios delinquentes que afetavam não saber que delinquiam: o que sabe um drone de seu voo? Ou o Freddy Krueger saído da tela de horror com machadinha para assassinar crianças. Mais? Um ex-presidente que também debochava de moribundos, incitando ao golpe em meio ao barato da morfina.
*Publicado na Folha de S.Paulo