por José Maria Correia
O título lembra meu salmo preferido, o 23 , mas é sobre uma das mais extraordinárias viagens de motocicleta, das muitas que fiz.
Tudo na minha vida é influenciado pela literatura e pelo cinema , não tenho culpa, fui condicionado pelas circunstâncias como diria o meu xará José , o sempre citado Ortega Y Gasset, conforme as conveniências de quem o cita.
Explico, a mãe dedicada professora no Instituto de Educação na década de 50 não tinha alternativa durante as aulas, à não ser me deixar sob os cuidados do irmão mais velho nos cinemas em frente do antigo prédio – o Curitiba , ou o América e outros em sessões corridas da tarde.
Foi nesses cenários de cadeiras de madeiras e forte cheiro dos bastões de magnésio a iluminar as telas que desenvolvi essa paixão que dura toda a minha já longa vida.
E então , cada vez que viajo procuro um local icônico, um hotel ,um bar , um velho estúdio, uma paisagem mesmo ou um ambiente que um filme popularizou.
Já tinha assistido com encantamento o icônico filme Easy Rider, no Brasil Sem Destino, com Dennis Hoper , Peter Fonda e Jack Nicholson , isso em 1969 e já apaixonado por motociclismo.
E em 1990 com um grupo de amigos motociclistas , fui em uma viagem de moto realizar o sonho de pilotar na Rota 66 e atravessar o Dead Valley , no árido deserto de Mojave na California.
Afinal por onde passou Michelangelo Antonioni filmando, devo ir como um cruzado para Jerusalém.
E foi em 1968 que o diretor de filmes como Blow Up ,La Notte e L`Aventura e o mestre das crises existenciais procurou o roteirista Sam Shepardd , Tonino Guerra e Clare People, a esposa de Bertolucci para escrever o que seria o road movie, um marco da contracultura e um fracasso de bilheteria.
Estranhamente escolheu dois jovens que nunca haviam atuado para os papéis principais- Mark Frechett e Daria Halprin e com a trilha musical de Pink Floyd e Rolling Stones realizou esse filme underground denunciando a violência da sociedade norte-americana com cenas que foram muito contestadas pelos conservadores e encantaram os jovens da época como eu .
O filme foi censurado por dois anos pela ditadura militar que via subversão , até nas cores das capas dos livros clássicos.
ZABRISKIE POINT
Mas por que o título Zabriskie Point?
É o nome de uma elevação à leste do Vale da Morte, uma parte do lago Furnace Vreek que secou há cinco milhões de anos e era habitado nas cercanias por mastodontes e outros dinos jurássicos.
O título do ponto, meramente para fins geográficos foi dado pelo engenheiro Cristian Zabriskye vice-presidente de uma mineradora que atuava na região.
Não há muita explicação para a atração que esse local exerce pelo mundo todo ,Michel Foucault por exemplo ,disse que foi lá que experimentou a viagem mais importante da sua vida e com uso do ácido lisérgico.
Segundo ele em outro local não teria tido os insights profundos que teve de forma alucinante.
É certo que somente no deserto se tem a visão completa do cosmos, das galáxias e das estrelas como eram antes da existência dessa bola de terra e água que chamamos Terra.
Também foi no vale da morte que o cineasta Stanley Kubrick filmou cenas de Spartacus , as do mercado de escravos com Kirk Douglas e Peter Ustinov.
As filmagens no extremo calor e sem a menor infraestrutura foram uma tortura para todo o elenco, mas o resultado compensou.
Um filme imortal , dos maiores já realizados.
Ustinov acabou levando um Oscar pelo papel afetado de Batitatus ,já o filme foi boicotado pelas milícias fascistas da época que pressionaram a Academia contra o roteiro adaptado por Dalton Trumbo, alegando que incitava à luta de classes e tinha inspiração comunista.
Ontem como hoje.
O vale tem paisagens lunares ou marcianas que incitam a imaginação e produzem efeitos mágicos nas câmeras, nas telas e na retina de quem as visita, dá para entender a escolha dos cenários na vastidão do deserto e suas paisagens que podem ser lunares ou marcianas.
Também Stars Wars teve cenas filmadas no Dead Valley que tem depressões a oitenta metros abaixo do nível do mar.
Lembrei disso tudo quando o Zé Beto me contou de uma reportagem da Folha sobre esse lugar cult de aventureiros, motociclistas e amantes da sétima arte.
O Vale da Morte, o deserto mais quente do planeta com temperaturas que passam dos sessenta graus no asfalto.
Quando chegamos com as possantes motos Harley Davidson que alugamos em Los Angeles, um policial rodoviário nos fez assinar um termo de responsabilidade quanto à possíveis insolações , problemas de pressão e outros decorrentes do calor.
É lógico que tiramos todas as jaquetas e proteções para tentar enfrentar a grande bola de fogo que iluminava o deserto, pouco adiantou.
Senti outro problema os cromados do farol da Harley Electra Glide ,refletiam em meus olhos como espelhos e nem os óculos escuros me permitiam enxergar, resolvi o problema cobrindo com fita isolante todos os espelhados.
Rodamos por umas duas horas e de vez em quando eramos surpreendidos com voos rasantes de aviões de caça stealth , Blackbirds e outros que surgiam do nada quebrando a barreira do som com um enorme estrondo .
A região é usada como espaço aéreo de aeronaves secretas que decolam das bases de Mojave e no alto dos morros sempre estão as clássicas caminhonetes pretas com policiais portando fuzis de longo alcance e mira telescópica, os Snipers para abater possíveis invasores .
Nas cercas de arame existem avisos que os invasores serão eliminados com tiros letais.
Bem , rodando no asfalto, por perto do meio-dia o calor ficou insuportável com os motores das motos estalando , dois companheiros novatos no grupo e marinheiros de primeira viagem , começaram a surtar e dizer que estavam morrendo , insolação , blecaute nervoso e tudo o mais, queriam desistir.
OÁSIS
Mas ficar parado no deserto com o sol à pino seria aumentar o rol dos que por inexperiência , falta de provisão ou azar ficaram no vale da morte.
Fomos em frente , logo mais estrategicamente havia uma parada refúgio com chuveiros com água quase morna, mas que serviu para refrescar.
Uma meia hora mais e chegamos em um oásis.
Um magnífico bar no melhor estilo do faroeste norte americano.
Podia lembrar aquele do filme Um Drink no INFERNO do Robert Rodriguez e do Quentin Tarantino onde a Selma Hayek( personagem Satanico Pandemonium) faz uma dança erótica com uma cobra no pescoço ao som de um rock da pesada , Tito and Tarantula.
Assistir Salma sensualizando para Quentin Tarantino, Harvey Keitel e George Clooney e a linda Juliette Lewys é algo inesquecível, mas logo depois dessa cena a segunda parte do filme vira um trash de vampiros para horror da crítica .
Feita a inevitável divagação sobre o filme voltamos então para o bar oásis que nos socorreu no Dead Valley.
Um barracão todo negro, sem janelas e com um grande luminoso aceso durante o dia.
Muitas motos Harleys estacionadas.
No interior o paraíso.
Letreiros de neon , garrafas de Jack Daniels , bourbons , scotches , tequilas e muitas torneiras de cervejas artesanais
Temperatura ambiente de doze graus , música country, mulheres americanas bonitas com seus shorts decotados e blusas que quase nada cobriam .
O pessoal jogando snooker e bebendo ,os homens todos estilos Hell Angels , tomando todas, mesmo com o risco de encontrar um bafômetro e ficar uns meses na cadeia .
Faz parte.
Ficamos lá um tempão.
Mas com a disciplina das longas viagens , só refrigerantes e muita água para hidratar.
Depois disso enchi meu capacete e as calças de pedras de gelo e fomos procurar o ponto Zabriskie , o local que me motivou ir ao Vale da Morte e o cenário para o amor dos personagens do filme.
Surpresa, chegando no ponto era uma elevação que subi de um fôlego só, resultado antes de terminar a escalada uma taquicardia que fazia o coração pular como um ioiô, uns longos minutos para controlar as batidas , uma verdadeira batucada naqueles cinquenta graus de temperatura e cheguei ao topo.
SURPRESAS E BÔNUS DO VALE DA MORTE
Outra surpresa ainda melhor e que encheu meus olhos de cinéfilo antigo, havia uma filmagem no topo da grande rocha e duas jovens quase nuas estavam interpretando enlaçadas em seus corpos perfeitos .
Várias câmeras, microfones , diretor e até iluminação artificial com refletores naquele lugar em que mal se podia abrir os olhos contra o sol.
Fiquei fotografando a filmagem e regressei para a planície onde o grupo já impaciente me esperava .
Com a fornalha ninguém mais quis subir .
Dali fomos para a última etapa quando se deixa a planície e a depressão do vale.
Paramos em um armazém colonial e ficamos um bom tempo na varanda desfrutando o pôr do sol inesquecível e para sempre.
Sentei-me em uma daquelas cadeiras de balanço como a do Clint Eastwood em Gran Torino .
Ali e de um local bem acima do vale e onde soprava uma leve brisa assisti reconciliado comigo e com minhas histórias de vida ao mais belo por do sol, com as luzes refletindo entre as formações de rochas como diamantes e caleidoscópios e pude entender o que os olhos dos cineastas cults viam através das lentes e eu não conseguia enxergar .
As cores do paraíso e da criação do mundo .
Realizado o sonho antigo que comecei a sonhar em uma tarde perdida no tempo nas poltronas do antigo cinema GLORIA, , deixamos o Vale e fomos em busca de outro cenário, o do filme Bagdad Café que ressuscitou para as telas Jack Palance.
A maravilhosa trilha musical Calling You diz bem do cenário na Mother Road, a Rota 66-“ estou chamando você para uma estrada que vai para lugar nenhum.”
Mas aí já será outra história no Arizona e que virá somente depois de muitas generosidades e incentivos querido amigo Zé Beto , que com amizade, dedicação e energia tolera meus bestialógicos.
Parabéns Zé Maria. Um criativo roteiro para uma geração de amantes do bom cinema. Parafraseando diria que O VENTO NÃO LEVOU tua prodigiosa memória.
Que venham mais “bestialógicos”, surpreendente Zé Maria!
Essa sua narrativa cinematográfica maravilhosa já é uma bela viagem. E quem não tem esse poder e esse prazer de viajar na fantasia e se incluir como protagonista no filme da vida, mesmo que conheça o mundo todo, deixa de fazer a melhor viagem, que se faz com o coração e a imaginação. No aguardo de mais bestialógicos.
Parabéns, Doutor Zé Maria, roteiro e retrospectivas fantásticos. Fraternal abraço!