5:48O PELÉ DO FUTEBOL

por Luiz Claudio Cunha*

Pelé. O apelido resume o personagem mais conhecido do futebol, o brasileiro mais famoso no planeta, o jogador mais completo e mais admirado do esporte mais popular do mundo, praticado atualmente por 265 milhões de jogadores em diferentes categorias, sob o mando global da FIFA, uma entidade que reúne 211 organizações esportivas, 18 membros mais do que a ONU.

Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, nascido em 1940, é um mineiro de Três Corações que conquistou corações e mentes do mundo do futebol pelos superlativos que envolvem sua carreira de 21 de anos de futebol, a maioria ainda insuperáveis, quase meio século após abandonar os campos em 1977, jogando pelo time americano do Cosmos, de Nova York.

É o maior artilheiro da história mundial, com 1.284 gols em 1.315 jogos, o jogador com mais gols feitos num único ano (127 em 1959). Foi goleador por 11 anos do campeonato paulista, o mais difícil do país, artilheiro em nove anos sucessivos (1957-1965). Estreou no time do Santos aos 16 anos, no campeonato de 1957, já como seu maior artilheiro, com 17 gols. Quatro anos depois, Pelé marcou 111 gols em 75 partidas disputadas e fez o Santos campeão em 1961, marcando 47 gols naquele campeonato, outra vez como artilheiro.

Em setembro de 1964, na partida contra o Botafogo em Ribeirão Preto, o Santos perdeu por 2 a 0 e foi vaiado, com Pelé e tudo. Na saída do jogo, ele avisou: “Tem a volta em Santos”. Em 21 de novembro, na Vila Belmiro, Pelé e o Santos deram a volta prometida sobre o adversário. Ganharam por 11 x 0. Pelé fez oito gols, o recorde de sua história: três em apenas 13 minutos. O melhor jogador em campo não foi ele, mas o desconhecido Machado, o arqueiro do time perdedor, explicou o centroavante Coutinho: “Se não fosse o goleiro, Pelé fazia mais dez”.

O ataque mais letal da história do futebol: Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe

Pelé tem 59 títulos de campeão na biografia. Dez pelo campeonato paulista, seis pela Taça Brasil, tri pelo Torneio Rio-São Paulo, bi da Libertadores, bi do mundial interclubes e tri mundial pela seleção, entre os mais importantes. A partida final do primeiro título de clubes em 1962 foi em Lisboa, na casa do poderoso Benfica de Eusébio. A primeira partida, no Maracanã, tinha sido vencida duramente pelo Santos por 3 a 2, dois gols de Pelé.

Na partida de volta, no Estádio da Luz lotado com 70 mil torcedores, a Europa viu uma noite luminosa do Santos e seu maior astro. O Santos goleou por 5 a 2, com três gols de Pelé, no que foi considerada uma das maiores atuações individuais da história do futebol. A Europa conhecia, enfim, o lendário ataque do Santos formado por Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe.

O mundo viu e se extasiou com centenas de gols de Pelé. Mas não viu o gol que o próprio Pelé considera o mais bonito de todos. Em agosto de 1959, com 19 anos, campeão do mundo um ano antes na Suécia, Pelé disputava um jogo na rua Javari, contra o Juventus de São Paulo. O Santos vencia por 3 a 0 e Pelé não tinha aparecido em campo, era vaiado por não jogar bem. Então, pouco antes do final do jogo, o gênio apareceu. Pelé recebeu um passe da direita, deu um chapéu no primeiro adversário, um segundo no zagueiro atrás e um terceiro no outro defensor. Quando o goleiro saiu, Pelé deu um quarto e último chapéu, antes de cabecear para o gol vazio, sem deixar a bola cair ao chão.

O jogo parou. O estádio paralisou, antes de irromper um aplauso de quase cinco minutos dos 10 mil felizes torcedores que testemunharam aquele momento histórico. Até o time adversário e o juiz cumprimentaram o autor do gol, que não foi filmado. O único registro é essa foto de Raphael Dias Herrera, do jornal A Tribuna, de Santos, do momento final em que Pelé cabeceia para o gol vazio, com o goleiro Mão de Onça já batido no chão:

Foto: Raphael Dias Herrera/A Tribuna

O gol mais bonito de Pelé, segundo Pelé

Aqui, em dois momentos, o gol recriado em computador. Um para o GloboEsporte, e o outro para o filme ‘Pelé Eterno’, documentário de Aníbal Massaini Neto.

Outro gol inesquecível, também sem registro, foi o que Pelé marcou em 1961 no Maracanã, num jogo contra o Fluminense pelo Torneio Rio-São Paulo. Aos 40 minutos, quando a partida estava 1×0 para o Santos, Pelé pegou a bola perto de sua área e disparou rumo ao gol adversário. Nessa louca arrancada, sem trocar passe com ninguém, apenas fintando e driblando, ele ultrapassou metade do time do Flu até ficar sozinho diante do goleiro Castilho, marcando o seu segundo gol no jogo.

O juiz da partida, Olten Aires de Abreu, descreveu: “Numa caminhada tortuosa e torturada, que durou quase um minuto e meio de posse de bola, Pelé driblou sete adversários, acaba fulminando com um drible da vaca ao goleiro Castilho e faz o gol. Os 130 mil que vaiavam passaram a bater palmas. As duas torcidas, em reverência, aplaudiram de pé por seis minutos. Quando me dei conta, o estádio inteiro estava aplaudindo. O que eu ia fazer? Aplaudi também e quando o Pelé se aproximou, o cumprimentei. Foi uma honra! “.

Foi um gol tão impressionante que um jovem jornalista que cobria o jogo para o jornal O Esporte, o palmeirense Joelmir Betting, não se conteve. Pagou do próprio bolso e mandou fazer uma placa, descerrada uma semana depois no estádio como marca inédita daquela proeza.

A placa do gol de placa

Nascia ali a expressão ‘gol de placa’. Quarenta anos depois, em 2001, Pelé retribuiu a gentileza e deu ao jornalista uma placa, que dizia: “Gratidão eterna ao Joelmir Betting. Gratidão eterna do autor do gol de placa ao autor da placa do gol”.

Pelé não tinha ainda 18 anos quando se tornou o jogador mais jovem a marcar numa Copa do Mundo, em 1958, na Suécia. Ainda é o maior artilheiro da Seleção Brasileira, com 77 gols em 92 jogos (Ronaldo fez 62 em 98 partidas).

É o único atleta a vencer por três vezes o campeonato mundial por seu país.

No final de 2000, a FIFA decidiu escolher o Atleta do Século. Um jurado de especialistas e ex-jogadores, reunidos pela revista da FIFA, escolheu Pelé, com 72,8% dos votos. Dois argentinos ficaram atrás do brasileiro: Di Stéfano, com 9,8%, e Maradona, com 6%. Garrincha e Zico fecharam a lista dos 8 melhores, com 1%.

Quem não teve a chance de ver Pelé em ação tem uma boa oportunidade com o filme ‘Pelé Eterno’, onde ¼ dos melhores gols dele estão reunidos em duas horas de documentário de pura arte, êxtase e deslumbramento. O filme de 2004 reduz a pó (por favor, sem trocadilho…) a tese de quem imagina que Maradona possa ter sido igual ou até mesmo melhor que Pelé.

Um ano antes, em 1999, a revista France Football reuniu 30 vencedores de sua tradicional Bola de Ouro para escolher o melhor jogador de futebol do Século 20. A seleção de craques do júri incluía Di Stéfano, Eusébio, Cruijff, Beckenbauer, Rummenigge, Paolo Rossi, Platini, Gullit, Ronaldo, Matthaus, Baggio, Van Basten e Zidane, entre outros.

O escolhido como o melhor do século por 17 dos 30 jurados foi Pelé. Quatro votaram em Di Stéfano e três, em Maradona, os mais votados.

A Bola de Ouro, prêmio tradicional da revista francesa, tinha um grave problema. Até 1995, era um troféu restrito aos jogadores em ação na Europa. O resto do mundo, incluindo Pelé, não existia. Por isso, o maior ganhador até agora é o argentino Messi, sempre jogando pelo espanhol Barcelona. Isso produziu notórios absurdos.

Em 1958, ano em que Pelé se revelou no Mundial da Suécia, o ganhador foi o francês Kopa, que não passou do terceiro lugar na copa. Em 1962, ano em que Garrincha garantiu o bicampeonato do Chile jogando praticamente só numa seleção desfalcada pela lesão de Pelé, logo na segunda partida, a Bola de Ouro foi conferida ao meio-campo checo Masopust, que o Brasil venceu na grande final em Santiago. E em 1970, ano da gloria suprema de Pelé na campanha memorável do tri no México, o prêmio foi dado ao desapercebido alemão Gerd Muller, cuja seleção foi batida pela Itália na semifinal.

Até que, em 2016, numa admirável revisão histórica, a France Football decidiu retificar seus critérios que privilegiavam só os jogadores da Europa na Bola de Ouro. Assim, corrigiu seus equívocos flagrantes e concedeu o prêmio de 1962 ao imparável Garrincha (no lugar do checo Masopust) e o de 1986 ao desempenho excepcional de Maradona no seu único título, a Copa do México (no lugar do russo Belanov, que ninguém mais lembra…}.

O troféu de 1970, enfim, foi dado atribuído a Pelé (no lugar de Gerd Muller), assim como o de 1958 (quando o vencedor foi Kopa). Além desses dois, a revista concedeu a Pelé outras cinco Bolas de Ouro: em 1959 (no lugar de Di Stéfano), 1960 (Luís Suárez), 1961 (Sívori), 1963 (Yashin) e 1964 (Dennis Law). Com esta necessária correção histórica, Pelé passou a ter sete Bolas de Ouro, contra seis de Messi.

Para quem duvida da genialidade incomparável de Pelé diante de tantos craques, nada melhor do que ouvir as estrelas do futebol com mais autoridade para identificar o astro maior. O craque holandês Cruijff disse: “Pelé foi o único jogador de futebol que ultrapassou os limites da lógica”. O kaiser Beckenbauer, que desfilou sua elegância como o imperador supremo do time da Alemanha, decretou: “Pelé é o maior de todos os tempos. Ele reinou supremo por 20 anos. Não há ninguém para comparar com ele”.

O húngaro Puskas, atacante mortífero do grande Real Madrid, afirmou: “O maior jogador da história foi Di Stéfano. Recuso-me a classificar Pelé como jogador. Ele estava acima disso”. O artilheiro da Copa de 58 na Suécia, o francês Just Fontaine, confessou: “Quando vi Pelé jogar, senti que deveria pendurar minhas chuteiras”. O inglês Bobby Moore, capitão do time inglês que venceu a Copa de 1966, reconheceu: “Pelé foi o jogador mais completo que já vi, ele tinha tudo. Dois pés bons. Magia no ar. Rápido. Poderoso. Poderia derrotar pessoas com habilidade. Poderia superar pessoas. Com apenas um metro e meio de altura (!), ele parecia um atleta gigante em campo. Equilíbrio perfeito e visão impossível. Ele foi o maior porque ele poderia fazer qualquer coisa e tudo em um campo de futebol. “

Bobby Charlton, companheiro de Moore na seleção inglesa, disse: “Eu às vezes sinto que o futebol foi inventado para esse jogador mágico”. O francês Michel Platini, ganhador de três Bolas de Ouro, definiu: “Há Pelé, o homem, e depois Pelé, o jogador. E jogar como Pelé é jogar como Deus”. O argentino Di Stéfano, estrela maior do Real Madrid, não tem dúvidas: “O melhor jogador de todos os tempos? Pelé. Lionel Messi e Cristiano Ronaldo são grandes jogadores com qualidades específicas, mas Pelé foi melhor”.

A camisa 10, por acaso, caiu nas costas do jovem Pelé, em 1958, quando o titular Dida se machucou, antes da Copa do Mundo. E, a partir daí o 10 virou marca de excelência, sinônimo de qualidade, ponto de destaque de qualquer time. O 10, ensinou Pelé na prática, é a camisa do craque, a camiseta que todo garoto quer vestir quando joga com o fardamento de seu time. Messi é o 10 no Barcelona, como Neymar no PSG ou Platini e Zidane na França. O craque nota 10, além do gol de placa, é outro legado de Pelé.

Além dos gols inesquecíveis, Pelé virou adjetivo e marca de genialidade. Quando se quer destacar alguém pela arte e pela excelência, a medida é o Rei do Futebol.

Shakespeare é o Pelé do teatro, Stradivari é o Pelé dos violinos, Nureyev é o Pelé do balé, Michael Jordan é o Pelé do basquete, como Federer é o Pelé do tênis e Ayrton Senna era o Pelé das pistas.

Esse é Pelé.

O Pelé do futebol. O eterno.

*Luiz Cláudio Cunha é gremista e um dos melhores jornalistas brasileiros.

*Texto publicado no blog de Juca Kfouri em 23/10/2020, quando Pelé completou 80 anos

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