por Mario Sergio Conti
Documentário de Juliana Vicente é uma experiência imperdível para brancos azedos da classe média playboy
“Racionais MC’s: de São Paulo para o Mundo” é um documentário imperdível para brancos azedos da classe média playboy. Imperdível para quem, na música popular, se deleita com João Gilberto e uns poucos satélites a seu redor. Imperdível para quem ignora a perifa pobre e preta.O filme de Juliana Vicente, na Netflix, acompanha 30 anos da labuta dos Racionais. Exibe feridas e fraturas dos de cabelo crespo e pele escura e dura, dos que saíram à procura da cura e hoje dizem à bruta: “Eu era a carne e agora sou navalha”. O baguio é doido. E doído.
Nem por isso o filme apela para os baixos instintos humanistas da plateia, levando-a a se condoer da exploração sofrida pelos Racionais, como nos tempos em que Mano Brown descarregava caminhões num supermercado na avenida Brigadeiro Luís Antônio.
Juliana Vicente demonstra que neguinho que carrega caixas, e do qual nem notamos o rosto, ou motoboy mal encarado que traz pizza, pode ser um artista sublime, alguém mais inteligente, mais virtuoso, melhor que você —e não tem água quente no chuveiro da quebrada onde mora.
Como milhares e milhares de minas e manos, os Racionais estavam fadados a essa sina até que um dia estrebuchassem numa fila do SUS no Capão Redondo, esbagaçados pela sociedade brasileira, tão brejeira. Ou então, como eram invocados, a caírem crivados de balas numa treta com a PM.
Saíram com tudo da lama para a fama, contudo. Vistos por uma câmera no teto, se debruçam sobre o mapa de São Paulo como se planejassem ir de busão de Sapopemba à avenida Paulista. Depois, anotam num mapa-múndi a rota de suas turnês à Europa, ao Japão e aos Estados Unidos. É nóis na fita.
“De São Paulo para o Mundo” não celebra essa trajetória. Não a considera uma vitória individual de Ice Blue, Edi Rock, KL Jay e Mano Brown, que teriam triunfado porque tramparam duro, já que o Brasil é top em mobilidade social. É o avesso, tá ligado?
O filme diz que os Racionais expressam a periferia brava. Só existem porque aí, ali, acolá e alhures, há trilhões de jovens condenados à opressão, ao racismo, às porradas e à penúria escrota. O talento dos músicos está em dar forma ao desespero vida lôka dos negro drama.
Como seu desespero não é suave, os Racionais são brigões. Seus inimigos não são a playboyzada dos cafofos massa da Faria Lima nem os vacilões dos gabinetes trash do Congresso e do Planalto. Seus oponentes são os paus-mandados dos dois clãs: a polícia.
Por isso, os Racionais e Juliana Vicente metralham à queima-roupa: “Não confio na polícia, raça do caraio. Se eles me acham baleado na calçada, chutam minha cara e cospem em mim. Eu sangraria até a morte, já era, um abraço!”.
É papo reto. O documentário mostra sequências em que a PM desce o pau nos fãs dos Racionais. E não só neles: “Vão invadir o seu barraco, é a polícia! Vieram pra arregaçar, cheios de ódio e malícia, filhos da puta, comedores de carniça”. Na moral, é bonito isso, véio?
Para responder essa questão é preciso ir além da estética, admitir que o belo é um conceito custoso, às turras com a política e a história. O som do grupo, por estar a anos-luz das harmonias usuais da canção brasileira, parece rombudo para quem está imerso noutras tradições, noutra classe.
A arte está escancarada nas letras. Elas falam do PCC, de “uma mina morta e estuprada”, do IML, de desemprego, de um três-oitão, de linchamentos, de “mais um pretinho na Febem”, da “molecada que vai na escola só para comer” (aliás: para os casos terminais de alienação prosódica, convém pôr legendas no filme. Funcionou comigo).Os Racionais fazem música de denúncia e protesto, mas não só. Ela é também divertimento, mobiliza milhares de corpos que cantam e dançam nos seus shows. Eles mimetizam as atitudes do grupo: braços em riste com punhos cerrados, cara feia, posturas hieráticas, humor zero. A alegria é a de palco e plateia estarem na mesma vibe. Mó função.
Assim como um neófito no rap julga a arte dos Racionais, a arte deles julga o neófito. Evidencia o que há de automatismo na fruição estética; vê que o gosto tradicional ensurdece quem se depara com o novo; percebe que a simpatia pela revolta dos manos pode levar à condescendência.
O julgamento se estende aos Racionais, que criticam seu próprio percurso. Analisam a tensão entre sua pobreza inicial e o enriquecimento, entre os erros que cometeram e as correções de rumo que a arte lhes impôs. Como os manos, continuam inconformados e dizem: tamo junto.