6:39Todo mundo é parecido

por Thea Tavares

“Todo mundo é parecido quando sente dor”. Sempre achei os versos da música “O poeta está vivo”, do repertório do Barão Vermelho, muito significativos e, volta e meia, me vejo recitando-os para legendar alguma situação específica em que as palavras traduzem com perfeição o sentimento ou a crítica. Gostaria de tê-los criado. Como me faltam os predicados intelectuais e filosóficos para tanto, contento-me em reproduzi-los.

Numa conversa descompromissada pelo WhatsApp, a referência ao Barão submergiu em meio aos debates sobre o aumento no número de casos da nova variante da Covid-19 nas últimas semanas e a inércia aparente na gestão da saúde da Capital em prevenir e remediar o problema, já na recepção dele pela atenção básica. Se a administração municipal está se mexendo, isso não é eficientemente publicizado e nem sequer reconhecido naquele circuito informativo dos nossos tempos, o Vinnu Zhapi.

As UPA’s – Unidades de Pronto Atendimento – estão abarrotadas de gente e com falta de pessoal para dar conta da demanda, diante da “surpresa” ou da emergência causada pela explosão das ocorrências. “Surpresa” entre aspas, visto que a própria OMS – Organização Mundial da Saúde -, com base na sua expertise, nos critérios técnicos e específicos de avaliação, não arrisca ainda arriar a bandeira de alerta hasteada e mantém o decreto de emergência sanitária internacional.

A palpiteira de plantão aqui se incomoda com essa suposta paralisia governamental em não se adotarem medidas ou recomendações simples e já velhas conhecidas de quem atravessou dois anos de experiências intensas e exaustivas no enfrentamento da doença e das mutações do vírus. Sem falar no sofrimento imposto pelo tratamento e convivência com as severas sequelas decorrentes da doença, o represamento de outros tratamentos e procedimentos graves, que não esperam para evoluir com maior agressividade, como os oncológicos, e nos custos humanos e econômicos pesados que a gente já sabe que são consequências perversas de não se agir a tempo. Talvez – e essa é mais uma convicção projetada, especulativa e isenta de provas cabais – esses governos não queiram alardear, causar pânico ou se ressintam previamente com julgamentos sobre suas ações. Mas para quem está na chuva da responsabilidade com a saúde pública, vale lembrar que o risco de se encharcar é o mesmo, seja por uma avaliação “impulsiva” agora, seja em função da perda do controle depois. Assim como é imperativa a necessidade de acertar, pela própria obrigação do exercício da gestão pública. Parênteses: se dou vazão a esta indignação é pela torcida fervorosa para que o poder público de fato acerte na execução de ações preventivas responsáveis, não o contrário.

Mas claro que não se pode alarmar a população e tretar, por exemplo, com a sociedade diante de uma eventual necessidade de fechamento de comércio, por antever a pressão contrária do setor. Até para não precisar chegar nisso, vale a pena gastar um pouco de sono e de fosfato no presente momento ao se debruçar sobre a questão. Parte desse setor empresarial, diga-se de passagem, não vê o menor problema com uma “louquidão” (termo popular para o verbete lockdown) de Deus-nos-acuda, quando seu candidato de estimação perde as eleições. Mas isso é outro papo.

Óbvio que nada é rápido e rasteiro na gestão dos dramas da emergência sanitária e que, a princípio, até onde sabemos, a ampla cobertura vacinal nos ampara e evita de nos jogar de volta ao epicentro de um colapso do sistema. Mas aquele gato escaldado com o menosprezo da “gripezinha”, na verdade, virou sopa de tanta preocupação. Uma reportagem da RPC TV no final da semana mostrou a UPA do Boa Vista, na capital paranaense, lotada de gente, à espera de um atendimento por infinitas 5h a 7h de chá de banco, inclusive pacientes com evidentes sintomas gripais e status de atendimento emergencial no pulso. Esse furdunço institucionalizado, de pessoas com diversas manifestações de mal-estar e doenças, ocupando um mesmo espaço, em vez de atenuar o problema que se avoluma lá fora e afunila para desembocar na UPA, acaba depositando mais lenha na fogueira e alimentando o fogo em vez de conter as chamas.

“…Quem tem coragem de ouvir?”

Mas por que a afirmação de que “todo mundo é parecido” se destaca e faz sentido nesse contexto? Ora, pois, contudo, todavia, cara pálida… Já vimos esse filme antes, só que pelo vetor contrário de fluxo. Quando a Covid-19 veio para o Brasil, no tempo e na distância da travessia dos fusos horários, a gente a viu desembarcar bela e formosa pelos acessos internacionais de portos e aeroportos, na bagagem dos usuários dos planos de saúde e das instituições particulares, primeiro, para depois bater plantão nos pronto-atendimentos da rede pública. Agora, com a transmissão comunitária bem familiarizada por aqui, ao longo desses últimos dois anos, a nova variante burla, desdenha da cobertura da imunização vacinal e adota um fluxo diferente: das unidades básicas (UBS’s) e UPA’s para a rede privada. Sim, pode chegar lá, na pessoa da diarista que entra em casa, do porteiro do prédio, visto que ambos tomam ônibus lotado todas as manhãs, do motoboy daquele serviço de delivery, da professora na escola do filho e assim por diante…

Será que é tão difícil ainda enxergar a situação antes que ela se manifeste também em dor, desespero e prejuízo no bolso dos pacientes dos hospitais e clínicas particulares? E custa, aliás, se importar com a vida e a saúde da diarista, do porteiro, do motoboy e da professora, organizando o atendimento médico e diminuindo o risco de contaminação nas esperas intermináveis nas unidades de saúde, com medidas simples e eficazes já assimiladas nos últimos dois anos? Todo mundo é parecido, inclusive, essa é a razão cívica de ser da universalização da saúde pública. Passada a semana do significativo feriado da Proclamação da República, os Legislativos municipal e estadual retomarão as sessões de definição do orçamento público para 2023. Entre as caças aos jabutis e os atropelos, cabe se atentarem para situações dessa natureza, a fim de evitar que os poderes públicos voltem a ser “surpreendidos” em flagrante despreparo para o enfrentamento de novos colapsos e angústias anunciadas. Não vamos perder a vantagem e o mando de campo em mais essa competição com o novo coronavírus e suas variantes, nem desfalcar nosso time. Precisamos igualar pelo direito e oportunidade de passarmos o mais ilesos que for possível por essa nova onda de contágio.

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