17:10Desgraça tem graça, literalmente: tem a palavra graça lá dentro

por Ricardo Araújo Pereira

Rir do mal para que ele não nos atinja é uma manifestação bastante profunda de humanidade

Você já ouviu aquela piada do filantropo que era tão bondoso que todo o mundo gostava muito dele? Não deve ter ouvido porque não existe. Bondade não tem graça nenhuma. A única hipótese de um filantropo muito bondoso protagonizar uma piada é se ele oferecer toda a sua fortuna, ficar na miséria, e depois ninguém o ajudar.

Qualidades só têm graça se forem tão exageradas que se transformam em defeitos. Antipatia tem graça. Simpatia não tem. Simpatia em excesso tem graça de novo. Perguntar “está tudo bem?” não tem graça. Perguntar “está tudo bem? Quer um chá? Uma massagem nas costas? Posso fazer-lhe um resumo do episódio da novela de ontem? Tem frio? Tem calor? De zero a dez, quanto?” é mais divertido, porque é chato.

A minha avó censurava-me sempre, com uma perplexidade que eu achava difícil de perceber: “Só te ris do mal”. Mas, na verdade, de que outra coisa a gente há de rir? Desgraça tem graça. Literalmente: tem a palavra graça lá dentro.

O filósofo francês Henri Bergson disse que o cómico exigia algo como uma momentânea anestesia do coração. “O riso não tem maior inimigo do que a emoção.” É isso mesmo. O riso protege os nossos sentimentos porque, quando rimos, fingimos não os ter. O que não existe não se pode magoar.

Talvez haja quem diga que essa é uma operação desumana. E, no entanto, é uma manifestação de humanidade bastante profunda. Rir do mal para que ele não nos atinja. Todos os que se confrontaram com o mal absoluto o fizeram, provavelmente, mais por necessidade urgente do que por vocação.

Uma das piadas que os judeus contavam na Alemanha nazista:

Um comandante da Gestapo diz a um prisioneiro judeu: “Vou te dar uma oportunidade. Eu uso um olho de vidro, mas está tão bem feito que nunca ninguém descobriu qual dos dois é. Se adivinhares, não te fuzilarei”.

O judeu responde imediatamente: “É o olho esquerdo”. O oficial nazista, admirado, pergunta: “Como é que descobriste?”. O judeu: “É que parece mesmo humano”.

E uma das que se sussurrava na União Soviética:

“Sergei, arranjei um emprego. Vou para o cimo daquela torre e o meu trabalho é estar atento. Quando a revolução mundial triunfar, sopro nesta corneta. Pagam-me um rublo por dia.”

“Ivan, isso é pouquíssimo.”

“Eu sei, mas é um trabalho para a vida toda.”

Eles riam do mal, claro. No paraíso ninguém ri. Para quê?

*Publicado na Folha de S.Paulo

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