por Voltaire de Souza

Ameaças aos poderes constituídos podem levar a atos de resistência democrática

Ameaça. Nervosismo. Desespero.
O presidente Bolsonaro volta a atacar o Judiciário.
—Botar um ponto final nesse abuso.
Elpídio era um velho militante socialista.
Olha aí. Não estou dizendo?
Ele tinha certeza.
—É golpe na certa.
Na parede, o retrato de Che Guevara contemplava o horizonte
—Com apoio da burguesia.
A garrafa de conhaque aproximava-se do fim.
—Esse pessoal diz que quer democracia…
Era amargo o sorriso de Elpídio.
—Mas o que quer é ferrar com o trabalhador.
A noite avançava com asas de gelo sobre os tetos de Santa Cecília.
—Mais um conhaque para espantar o frio…
Elpídio se debruçou sobre a sacada do apartamento.
—E aí, mendigada? Ninguém reage não?
Debaixo das marquises, só silêncio.
—Também… passou das quatro da manhã.
A garrafa chegava ao fim.
—Logo, logo, eles põem os tanques na rua.
Justamente.
Um barulho agressivo de motores atravessava a madrugada.
Elpídio despertou de seu breve repouso.
—É tanque, pô. Ataque de surpresa.
Da sacada, ele avistou a cena preocupante.
—Veículo blindado… chegando devagarinho.
Ele se segurou no parapeito.
—É a turma do capacete. Eles estão prontos para tudo.
Elpídio se lembrou de suas antigas lições de tática guerrilheira.
—Com o que eu tenho de garrafa aqui…
Não era difícil preparar um coquetel molotov.
Alguns projéteis foram arremessados contra o alvo conservador.
O lixeiro Nival reclamou com palavras expressivas.
—Quem é que está jogando esse troço no meu caminhão de lixo?
Elpídio se escondeu atrás de uma desbotada cortina de voal.
—Pelo menos eles reconhecem. Que é lixo mesmo.
Ele não viu algumas chamas se espalharem sobre a calçada.
Já estava inconsciente quando o morador de rua Férgusson deu a sua opinião.
—Beleza. Só jogar uns galhos aí que sai uma fogueirinha boa.
Nesta época de eleições, é essencial manter a calma e a lucidez.
Mas quando o frio é grande, sempre tem quem gosta de uma esquentadinha no ambiente.

*Publicado na Folha de S.Paulo