Falta de Assunto já é bem velha. Não se sabe exatamente seu local de nascimento. Imagina-se que seja filha de Rodeio e Divagação. Contudo, há os que defendem que sua mãe é Tergiversação.
Pelo jeito rodou mundo, pois não há lugar onde não a conheçam. Muitos creem, porém, que ganhou corpo na Irlanda, ali por meados do século 18. Falta de Assunto mostrou que tinha uma forte vocação literária e deu uma colaboração incrível no livro do escritor e clérigo anglicano Laurence Sterne, A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy. Naquelas clássicas páginas, cheias de digressões em cima de digressões, podemos perceber claramente Falta de Assunto sendo o centro de uma obra literária.
Não se sabe o porquê, mas Falta de Assunto deu uma sumida por um bom tempo. Veio a reaparecer, novamente na Irlanda, no livro Ulysses, de James Joyce. Passaram a ver nos monólogos interiores das personagens, com folhas e folhas de fluxos da consciência, uma mão da Falta de Assunto. O episódio já causou muita controvérsia. Detratores de Joyce costumavam afirmar que, se tirassem a Falta de Assunto de Ulysses, a obra poderia ser vendida com apenas oito páginas, no formato filipeta.
Falta de Assunto acabou tomando parte de “n” gêneros artísticos: na pintura Quadrado branco sobre fundo branco, de Malevich; em canções cujo refrão é sha la la la la; e na literatura beatnik. Apesar de que uma parcela de críticos aponta menos a presença de Falta de Assunto nos textos beat do que propriamente de Falta do Que Fazer.
As artes dramáticas também devem muito a Falta de Assunto. Sem ela, para começar, não existiria o cinema francês, em especial a Nouvelle Vague. Grandes produções de Hollywood, como Um lugar Silencioso seriam igualmente inviáveis. E, no teatro, Esperando Godot nunca teria se tornado um marco da dramaturgia universal.
O curioso é que, apesar de circular em tantos meios, o auge de Falta de Assunto ocorreu na crônica. Foi ali que obteve, e continua obtendo, status de temática elevada. Nenhum cronista respeitável conseguiu erigir uma obra excepcional sem a ajuda de Falta de Assunto. Duvida, amigo seguidor? Então me aponte uma edição de crônicas, considerada notável, que não trouxesse milhares de caracteres dedicados a dizer absolutamente nada? Do tipo narrativas sobre as ondas do mar, caixas de fósforos jogadas nas calçadas, reflexões sobre as nuvens, as árvores de uma cidade, um cãozinho abandonado. Justamente quando a Falta de Assunto vira conteúdo é que o escrito ganha recheio. Sem Falta de Assunto, Rubem Braga nunca teria virado assunto nas rodas literárias.
O que acho injusto é ainda não terem criado uma data específica para celebrá-la no Calendário das Efemérides. Para todos verem posts em sua homenagem pelas mídias sociais: hoje é o dia internacional da Falta de Assunto. Aposto que milhares de pessoas teriam um ponto de partida para iniciar conversas. E não seria o batido: será que vai chover?
*Publicado no Estadão