por Ruy Castro
Danuza Leão ajudou a civilizar o Brasil e a consagrar as minissaias
Escritora que dizia o que pensava, foi a musa de Ipanema e conheceu os intestinos do poder morreu, aos 88, no Rio
Há tempos, conversando com Danuza Leão, eu lhe disse que ela era a única pessoa que me faria quebrar a cláusula pétrea de que não se deve biografar pessoas vivas —porque a história delas ainda não terminou.
Danuza já passara dos 80 e seguia na ativa. Todo dia saía de seu apartamento em Ipanema, atravessava a rua e ia tomar um coco no quiosque em frente. Às vezes, variava e tomava um avião —ia a Paris, cidade que fazia de varanda, para observar o mundo.
A ideia de a biografar e tentar extrair dela o que nunca contara a ninguém era irresistível. Danuza também achava. Mas, como outras ideias irresistíveis, esta ficou por ali. Não havia pressa, éramos imortais.
Haveria também o desafio de definir Danuza sem os clichês de sempre. Uma mulher sempre à frente de seu tempo. A independência em pessoa. A verdadeira musa de Ipanema. Tudo isso era verdade, mas Danuza nunca se reconheceu nesses papéis. Sempre foi de uma implacável lucidez e portadora de uma bagagem que poucas mulheres reuniram numa encarnação. Certa vez, quando ofereceram a ela um programa de TV, alguém advertiu que era “um perigo deixar a Danuza dizer o que pensa”. “Porque ela diz mesmo.”
Danuza nasceu pronta, em 1933. A certidão diz que foi em Itaguaçu, no Espírito Santo, mas aos dez anos já morava em Copacabana. Aos 14, ainda de tranças, seu melhor amigo era Di Cavalcanti. Antes de completar 15, foi debutante da revista Sombra. Trocou o colégio por aulas particulares, livros impróprios para sua idade e viagens a Paris, Roma e Punta del Este. Sua turma era Di, Rubem Braga, Vinicius de Moraes.
Aos 18, foi convidada por Assis Chateaubriand a um baile no castelo do barão de Coberville, nos arredores de Paris, para promover os tecidos brasileiros —Danuza desfilou a cavalo, vestida de Maria Bonita. Ali decidiu que seria modelo na capital francesa. Pediu emprego ao costureiro Jacques Fath e ganhou.
Seu cabelo quase louro foi cortado de todo jeito e pintado de verde, prata e cenoura. Com desfiles todos os dias, em Sevilha, Madri, Veneza, não havia tempo para almoçar ou jantar —passava a camembert engolido com beaujolais. Mesmo assim, posou para Richard Avedon e Robert Capa e namorou Daniel Gelin, galã do filme “La Ronde”, de Max Ophüls, e dependente de heroína.
Dois anos depois, Danuza decidiu voltar. Ao chegar, em 1953, achou o Brasil muito chato e começou sua longa missão civilizatória. Seu amigo Sergio Figueiredo a levou para visitar na prisão o jornalista Samuel Wainer, proprietário do jornal Última Hora e protegido de Getúlio Vargas presidente.
Quando Wainer saiu da grade, ela se casou com ele. Mas, em 1954, com o suicídio de Getúlio, Wainer se viu na baixa, com o Última Hora quebrado e 14 processos nas costas. Em 1956, com Juscelino Kubitschek no Catete, Wainer subiu de novo. Danuza se tornou a primeira-dama da imprensa e locomotiva social do Rio, indo ao Municipal com as estolas de visom que Wainer mandava vir de Paris.
Durante seus sete anos juntos, Danuza deu a ele três filhos –que seriam a artista plástica Pinky, o jornalista Samuca e o produtor de cinema Bruno, todos Wainer– e conheceu os intestinos do poder. Foi à China e esteve com Mao Tsé-tung, ia a Brasília visitar as obras e, em casa, servia canapés aos banqueiros, militares, políticos e pelegos que faziam rapapés a Samuel Wainer. Vivia tudo isso com a naturalidade com que entrava na fila do Moraes, sorveteria de Ipanema.
Em 1961, Danuza deixou tudo ao trocar Samuel Wainer por Antonio Maria, cronista, homem da noite, feio, com quase o triplo do seu peso e compositor de “Ninguém me Ama”. Danuza ficou três anos com Maria, que escrevia, amava, comia, brigava e era ciumento na proporção de seu corpanzil —não deixava que ela andasse de calcinha em casa diante da TV porque, na tela do noticiário, o locutor Luiz Jatobá a poderia ver.
Mas Maria era também cardíaco e teve um infarto. Danuza emagreceu 15 quilos cuidando dele no hospital, de levantar e abaixar sua cama, dar banho nele e comida na boca e botar na vitrola os discos que ele recebia. Dois anos depois, se separaram. Maria teve novo infarto e, dali a meses, o infarto fatal. Mas, então, já era 1964 e ela nem estava mais no Brasil. Com o golpe militar, Wainer fora para o exílio em Paris. Danuza pegou os filhos e se juntou a ele.
Em 1966, quando Wainer se reequilibrou, Danuza voltou sozinha para Ipanema. Fez uma ponta em “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, consagrou minissaias e namorou quem quis. Quando surgiram as primeiras feministas, que viam no homem um inimigo, Danuza fez do homem um aliado e inverteu um velho privilégio masculino –havia homens para casar e homens para namorar.
E, quando se casou de novo, entre 1971 e 1975, foi com outro jornalista, Renato Machado. “Jornalistas são divertidos”, ela dizia. “Chegam tarde em casa, têm certas vantagens do poder, mas não se deslumbram, e sabem de tudo antes dos outros.”
Os anos 1960 e 1970 foram de transformações –mulheres morando sozinhas, dizendo palavrão, trabalhando fora, trocando de marido. Nada disso era novidade para Danuza, muito menos o coquetel de sexo, drogas e rock and roll. Já os anos 1980 foram diferentes. Além de oito anos dormindo tarde, como “directrice” do Régine e do Hippopotamus, ela aprendeu o significado da dor —o suicídio de seu pai, o advogado Jairo Leão, e a morte do filho Samuca, ambos em 1984, e a morte da irmã Nara Leão, em 1989. Em todas essas desgraças, Danuza apenas se recolheu. Nunca dividiu sua dor.
Nos anos 1990, ela não estava brincando quando disse que já tinha ido a todas as festas. Fora também a todos os golpes de Estado, exílios, comícios, passeatas, desfiles, decisões de campeonato, amores e desamores. Já era tempo que começasse a distribuir a “sagesse” que só reservava aos amigos.
Em 1991, a constatação de que o Brasil não sabia mais o que era ética nem etiqueta a levou a escrever “Na Sala com Danuza”, um manual de procedimento, uma tentativa de reeducação antes que chegássemos à barbárie. O livro só surpreendeu os que não a conheciam e vendeu 200 mil exemplares.
Dali vieram centenas de crônicas na imprensa e, durante anos, sua brilhante coluna diária no Jornal do Brasil, no lugar de Zózimo Barrozo do Amaral, que fora para O Globo. Danuza não precisava ser jornalista para chegar tarde em casa, ser íntima do poder e saber tudo antes dos outros. Ela sempre soube.
E, como sempre soube também se comportar, só contou o que quis no livro de memórias que publicou em 2005. Daí ele ter se chamado “Quase Tudo”.
*Publicado na Folha de S.Paulo