por Conrado Hübner Mendes
Enquanto indagamos se haverá golpe, o clima de golpe iminente vai fazendo sua parte
Intérpretes do Brasil não sabem responder ao enigma psicopolítico do nosso tempo: a sociedade brasileira fez pouco caso, por 30 anos, da vocação demasiadamente desumana de seu psicopata maior, sucedida por quatro anos de promessas de morte cumpridas, ou seu psicopata maior encarna desejo coletivo inconfesso? Foi um surto de autoengano suicida e democida, ou execução de plano homicida? Déficit cognitivo ou torpeza moral?
Bolsonaro foi culposamente mal compreendido ou dolosamente atiçado? As 700 mil vidas, a Amazônia, os indígenas, a pobreza, a fome, a corrupção holística, o sigilo para interesse pessoal e a queda vertiginosa de indicadores de segurança e liberdade: sem querer ou sem querer querendo? Se 2018 deixava dúvidas, 2022 dificultará a vida no armário.
Meu assombro com Bolsonaro e com a afasia coletiva diante de sua repugnância espalhafatosa começou na adolescência, quando da tribuna um deputado defendia o fuzilamento do presidente FHC. Um tio militar, admirador da virilidade de Collor, assentia.
Em 2014, a rendição de Dilma perante deputado que forjou o “kit gay” e a levou a eliminar programas de inclusão e demitir gestores, já me despertava o alarmismo. Escrevi no Estadão: “Quando o medo da derrota sequestra lideranças que em silêncio desidratam projetos de implementação de direitos, o alarme passa a tocar” (“Reféns do bolsonarismo”).
Em 2018, um dos mais histriônicos e violentos ativistas brasileiros, prestes a vencer as eleições, prometia jogar ativistas na ponta da praia (onde milicos desovavam corpos). Quando o presidente diz que te odeia, não é um ódio qualquer. É ódio do presidente. Nas tiranias do século passado, esse tipo de ativismo recebeu outros nomes.
Já sabíamos que PIB e PIBB (Produto Interno da Brutalidade Brasileira) não podiam crescer juntos de forma sustentável. A delinquência política não estava precificada. A ciência social e econômica avisava. A Faria Lima relinchava e Paulo Guedes rebolava.
Pagamos o preço intangível da omissão do Congresso Nacional diante de crimes de responsabilidade seriais e submissão do procurador-geral da República diante de crimes comuns; do negacionismo político, climático e sanitário; do colaboracionismo amedrontado de instituições de estado e de partidos venais; da revogação tácita de capítulos da Constituição, cujas “quatro linhas” vão sendo traçadas por generais revanchistas contra a democratização.
O revanchismo que o STF, em 2010, tentou evitar ao interpretar a Lei de Anistia, fechando os olhos para crimes contra a humanidade, retornou contra o mesmo STF.
Enquanto perguntamos se haverá golpe, qual golpe e o que fazer quando o golpe vier, mal percebemos que o clima de golpe iminente já vai fazendo seu serviço: instituições eleitorais operam no limite do stress e do erro, reféns do assédio e desprovidos de meios para lidar com a metralhadora de desconfiança em massa. O TSE não tem fôlego para organizar eleições sob a mira de um fuzil.
O clima de golpe mantém em alerta falanges armadas e com instintos à flor da pele. Qualquer faísca pode provocar eventos isolados de violência, sair do controle e entornar o caldo. Instituições com medo entram em modo sobrevivência, tentadas a ceder.
Funciona assim a transição para um regime de eleições sem democracia, ou de autoritarismo eleitoral. Nesse regime, eleições servem ao autocrata.
Já sabemos bastante sobre 2022. Sabemos que não haverá eleições livres e pacíficas, pois irreversivelmente intoxicadas. Bolsonaro não reconhecerá eventual derrota. Forças Armadas o apoiarão. Presidente derrotado incitará convulsão social. Vencedor talvez não consiga assumir.
Sabemos também que um desastre repentino, velho truque da cartilha que manda incendiar o Reichstag para prender comunistas, pode eclodir. Choques fabricados em laboratório autocrático, se não neutralizados a tempo, desencadeiam emergência e o fechamento do regime. Militares não devem errar no próximo Riocentro.
O historiador Timothy Snyder recomenda “calma quando o impensável acontecer” (“Tirania: vinte lições do século 20”). Mas não tanta calma. O impensável já está acontecendo.
*Publicado na Folha de S.Paulo