por Carlos Castelo
Ele vivia com Olga e um outro. Mas não configurava trisal. Os dois inseparáveis dela eram um iPhone 13 e um Xiaomi. Olga comprara este último para ser o “celular do ladrão”. No início, a autoestima do chinezinho despencou. Afinal, parecia que o filé era sempre para o 13 e os miúdos para ele.
A intenção talvez fosse até algo do gênero. O cotidiano, porém, se mostrou diferente. O iPhone ficava em casa e o Xiaomi velho de guerra era quem acompanhava a moça em tudo: reuniões de trabalho, caminhadas por parques, ida a bares, restaurantes, baladas e outras coisas que não se relata em crônica.
Xiaomizão. Era como Olga se referia ao aparelho a ser subtraído pela gatunagem. E não é que os dois viajaram juntos até para o exterior? Olga era publicitária e, após o Festival de Cannes, fora visitar amigos em Paris. O telefone descria que estava no Louvre, em pleno Gobelins acompanhando a patroa num queijo e vinho, ou fuçando livros nos sebos à beira do Sena.
Só uma coisa o chateava. Quando amigos pediam uma selfie, Olga dizia: “tirem com o de vocês, a câmera do meu celular do dia a dia é uma droga”. E as lentes nem eram tão ruins assim. É que macmaníacos têm o cacoete de achar que nada presta se não forem os brinquedinhos inventados pelo Jobs.
Meses depois da gloriosa estada francesa, Olga marcou um passeio pelo centro com o crush do Tinder. No pôr do sol, os dois estavam no topo do edifício Martinelli, abraçados e envoltos pela cidade. Para mágoa do Xiaomizão, Olga clicava a vista com a câmera Canon do parceiro.
O estirão terminou dando fome e sede. Decidiram, mesmo assim, promover um sprint até o Bar da Dona Onça. Chegando lá, só para zoar, ordenariam um estrogonofe.
Próximo à avenida São Luís veio o lanceiro e deu a voz de “a bolsa ou a vida”. Olga tomou a frente. Tentou negociar com o malandro, evitando que este tomasse a Canon do cara-metade.
– Leva meu celular, vai. Tá novinho e a câmera é ótima.
Mas o rapaz não era homem de 50%. Foi discordando:
– Ô, se levo. Mas passa a máquina do boyzinho pra cá também…
Xiaomizão deu até graças por estar mudando de mãos. O que era agora aquilo de “câmera ótima”? Em Paris, pour les amis, sua óptica era uma droga. Na frente do ladravaz, se trasformara na Leica do Sebastião Salgado? Há limites para dissimulação até em telefonia.
Da São Luís foi para para Marsilac. Hoje, Xiaomizão nem sabe onde está. O atual dono desativou, por razões de ofício, seu sistema de localização.
E sabem de uma coisa? Ele acabou não desgostando da nova conjuntura. Após uma bem-sucedida incursão num banco, lhe deram capinha e bateria novas. Ganhou bem uns dois anos de sobrevida. É da sua calculadora que sai a contabilidade da facção. E o melhor: Xiaomizão faz todas as selfies do bando.
Quando cai a noite o pousam na mesinha do barraco. Ele se aninha ao lado dos sacolés, e pondera, faceiro: “nada como a gente ter consciência de classe!”.
*Publicado no jornal O Estado de São Paulo