O Brasil é por formação um país violento, não faltam exemplos históricos que comprovem isso. Somos uma nação que, além de produzir diariamente todo tipo de violência, tem também uma mentalidade agressiva que mesmo extrapolando o limite da lei é muitas vezes aceita e celebrada socialmente.
Quando filmei o documentário “PIXO”, em 2009, me surpreendi com a quantidade de gente dizendo que, se pudesse, mataria o pichador que assinou o nome com tinta em spray no muro de sua casa.
Propor um homicídio como contraponto a um crime infinitamente menor como a pichação, normalmente punido com penas alternativas, é um sintoma que mostra como a violência está enraizada no pensamento coletivo do brasileiro, faz parte da fantasia e do imaginário das pessoas confundindo os papéis entre vítima e agressor.
É natural ter raiva e querer o mal de quem te rouba ou provoca algum tipo de prejuízo, mas quando isso sai do campo das ideias e vira uma ação real, significa que estamos em apuros. Uma das diferenças entre a civilização e a barbárie é a presença de uma governança que trabalhe para controlar esse impulso animalesco do ser humano e ofereça alternativas de justiça ao cidadão proporcionais ao crime cometido, mas o que vemos hoje no Brasil é o oposto disso.
A flexibilização do acesso às armas é uma obsessão do presidente Jair Bolsonaro. Talvez seja a única promessa de campanha que ele realmente se empenhou em cumprir. Se por um lado isso legitima a sanha de uma classe média que ao aceitar esse discurso e botar uma arma dentro de casa não percebe que corre um risco muito maior do que antes, por outro abre as portas do mercado legal de armas para o crime organizado como mostrou reportagem de Rafael Soares publicada em O Globo deste domingo deixando claro como essas armas legalizadas estão chegando sem escalas nas mãos de grupos armados milicianos.
Ações anteriores do governo federal como a defesa do “excludente de ilicitude” e a portaria que dificulta o rastreamento de munições, posteriormente suspensa pelo STF, mostram que armar o “cidadão de bem” pode ser apenas mais uma cortina de fumaça para o que parece ser o objetivo maior desse governo que é o de fortalecer grupos paramilitares armados cuja ligação com o presidente da república e sua família é notória.
O resultado dessa corrida armamentista é uma sociedade cada vez mais doente onde o crime organizado se fortalece e a população fica paranoica a ponto de confundir o vizinho com um ladrão e matá-lo, como aconteceu recentemente em São Gonçalo. Estudos como o do sociólogo José de Souza Martins, autor de “Linchamentos, a justiça popular no Brasil”, mostram que apesar de não ser novidade, casos como o do congolês Moïse Kabagambe, assassinado em um quiosque na Barra da Tijuca, são cada vez mais comuns. Ao invés de uma política de segurança pública responsável, Bolsonaro com seu discurso doentio estimula e legitima o cidadão a buscar a justiça com as próprias mãos.
Na última quinta entrou em cartaz nos cinemas “A Jaula”, primeiro longa de ficção que dirigi e que conta a história de um médico (Alexandre Nero) que, cansado de ser roubado, resolve dar uma lição no próximo ladrão que tenta roubar a central multimídia de seu carro. Em punição ao roubo ele prende o bandido (Chay Suede) dentro do carro por dias, sem água e comida, e começa uma sessão de tortura com ele, sempre acreditando estar fazendo a coisa certa. O filme discute essa distorção e a troca de papéis entre vítima e agressor que o sentimento de justiça com as próprias mãos provoca.
Essa gente sempre existiu no Brasil. Eles aparecem e desaparecem de acordo com o momento político. Durante a ditadura militar estavam em toda parte, mas com a redemocratização se recolheram. Desde que Bolsonaro chegou à presidência, eles botaram a cara para fora novamente e o Brasil ficou ainda mais perigoso do que já era. Estamos cercados. De um lado o crime comum, do outro o crime organizado e no meio o “cidadão de bem” armado e perigoso, cheio de vontade de descarregar sua pistola junto com suas frustrações no primeiro que olhar torto na rua. Depois é só pedir desculpas e dizer que confundiu com um ladrão.
*Publicado na Folha de S.Paulo
Apresente propostas. Falar depois do ocorrido é fácil. Como comentar aumentos dos preços depois como muitos fazem.