O mundo existe para resultar num livro, disse o poeta Mallarmé. Resumido ao que se passou entre as nossas fronteiras nos últimos 20 meses, ele resultará no relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Covid, cujos trabalhos estão se encerrando. Se seus autores concentrarem nele uma fração do que se apurou a partir dos depoimentos, investigações, testemunhos, mensagens e gravações, teremos um dos documentos mais importantes da história do país —não fosse a pandemia sob Jair Bolsonaro um episódio a fazer companhia ao genocídio da população indígena, ainda em curso, e aos 300 anos de escravidão.
A depender do grau de objetividade do relatório, com a dispensa de arroubos, advérbios e adjetivos, a simples enumeração dos fatos exporá a maior sucessão de crimes e infâmias já praticada por um governo brasileiro, maior até do que sob Getulio (1937-45) e Médici (1969-1974). Nestes, a morte (por tortura e execuções) se dava em paralelo à corrupção. Bolsonaro conseguiu uni-las organicamente —milhares de brasileiros morreram para que uma súcia enriquecesse.
O relatório mostrará como não só médicos, militares e servidores se deixaram prostituir individualmente por Bolsonaro, como ministérios, secretarias, conselhos, associações e até tribunais foram infectados. A seu modo, todos trabalharam contra a vida, desinformando, mentindo, sabotando e, como se sabe agora, operando compras e vendas em milhões.
O relatório poderá ser também um marco na história da crueldade humana. Alguns de seus figurantes parecerão folclóricos, como um cabo da polícia, um homem-arara e outros que, tentando se passar por mudos ou desmemoriados, quase fizeram rir. Mas dois nomes provocarão vômito: Eduardo Pazuello e Marcelo Queiroga. Um rasgou a farda; o outro, o jaleco. O relatório os mostrará na sua repulsiva nudez.
Quanto a Bolsonaro, sua lista de crimes talvez exija um volume exclusivo.
*Publicado na Folha de S.Paulo