5:19A noite em que Sale Wolokita salvou a pele de Sylvio Back e as peripécias de Milton Ivan – parte 6

por Paulo Roberto Ferreira Motta

Foi como se irrompesse a 3ª guerra mundial. Os pracinhas, todos, levantaram, berravam e entraram em posição de combate na frente do Back e, na falta de metralhadoras, fuzis e granadas, passaram a lançar os mais cabeludos palavrões. O mais forte não foi nem aquele que atinge a mãe, mas sim o de “nazista”. “Nazista”, logo o Sylvio, filho de um judeu húngaro que quando a coisa ficou feia fugiu da Europa com a mulher para Blumenau, onde o cineasta nasceu. A transmissão foi interrompida e as luzes acesas. Sylvio perdeu a brancura do rosto e estava mais vermelho que o Beira Rio em noite de decisão de Libertadores da América. Quando se aproximaram perigosamente de Sylvio Back, com o claro intuito de agredi-lo fisicamente, o professor René levantou, ergueu os braços e num tom de voz até então jamais ouvido lançou: “Silêncio!”. Foi como se o próprio general Patton tivesse dado uma ordem aos soldados para recuarem. Percebendo a oportunidade, Sale Wolokita levantou, puxou o Sylvio pelos ombros e, não tão depressa como se estivessem fugindo e não tão devagar como se estivessem provocando, saíram pela porta de serviço e se refugiaram, soubemos depois, no gabinete do secretário René Dotti.

Fez-se um silêncio. Nessas horas de aperto, o professor René se agigantava e parecia mesmo o general Patton. Não fugiu da raia. Começou um longo discurso. Achava, na verdade tinha certeza, de que havia um grande equívoco entre os presentes. O filme era formado por documentários da época, realizado por cineastas norte-americanos. Logo, as cenas eram reais. As legendas, ninguém poderia dizer o contrário, retratavam fielmente o que os personagens falavam. Com certeza, o filme, depois de mostrar a incúria dos governantes brasileiros em mandarem milhares de soldados sem instrução, preparo, roupas, agasalhos, comida quente e armas, na verdade mostrava que os pracinhas tinham sido vítimas de uma politicagem nojenta. Sob esse ponto de vista, eram vítimas e não algozes. O fato de terem sobrevivido e estarem ali, com suas medalhas, só provava que eram verdadeiros heróis, a quem a Pátria deveria prestar todas as homenagens.

O clima começou a apaziguar quando, no meio dos pracinhas, veio uma acusação que nem 100 Renés Dottis poderiam absolver o Sylvio Back: a tal Rádio Auriverde era da propaganda nazista e o filme, até então, não dizia isso aos espectadores. O professor René não se deu por achado. Disse que não sabia, mas tal fato não elidia o heroísmo dos que estavam presentes e de todos aqueles que haviam morrido nos campos de batalha ou, depois que voltaram, em virtude da idade avançada. O ambiente se acalmou e os pracinhas começaram a deixar o recinto. Na saída, recebi um abraço do seu Décio e depois nunca mais tive notícias dele. Ficamos, o professor René, Reinaldo de Almeida Cesar Sobrinho, Milton Ivan Heller e eu. Quando viu que iríamos fechar a porta de entrada, Milton Ivan levantou do fundo da plateia, se encaminhou à saída e deu boa noite a todos. Pela cara que fazia estava cheio de ideias na cabeça. Nós, os restantes, fomos para a porta de serviço em direção ao gabinete. Neste, afundados no sofá estavam Sylvio e Sale. O professor René chegou a apontar o dedo para o Sylvio e quando ia falar alguma coisa, desistiu, deu boa noite e foi para casa. Back e Wolokita tomaram a porta de saída. Reinaldo e eu ficamos nos olhando. Instintivamente, desligamos as luzes, fechamos a porta e fomos embora.

No outro dia, chegando para trabalhar antes da oito, levei um susto: o hall de entrada estava repleto de jornalistas. Eram dezenas. Descobri logo o que tinha acontecido. Ao deixarem o Auditório Brasílio Itiberê, os pracinhas foram para o Museu do Expedicionário e redigiram uma violentíssima nota contra Back e o filme, mas sem nenhuma crítica ao secretário e/ou a Secretaria de Cultura. Passaram a madrugada inteira andado pela cidade e distribuindo a nota em todos os jornais (inclusive os de fora de Curitiba, que tinham sucursais aqui), revistas, rádios e TVs. Todos queriam uma entrevista com o professor René Dotti. A turba era tão grande que a Adélia Lopes, assessora de imprensa da Secretaria, resolveu dividir o pessoal em duas turmas: a primeira dos jornalistas de rádio e televisão e a segunda do pessoal da imprensa escrita. O primeiro grupo entrou no gabinete liderado pelo saudoso e inesquecível Ali Chain, o Califa 33, isso mesmo, até o mais famoso repórter policial da cidade estava lá. Depois das 10, entraram os dos jornais e revistas.

Quem acordou cedo e chegou lá, também antes das oito, foi o Aramis Millarch, mas não entrou no gabinete, nem com a primeira turma nem com a segunda. Aboletou-se na minha sala e queria a história toda, nos mínimos detalhes. Sem muita paciência, fiz uma síntese do acontecido. Aramis ficou satisfeito com a versão dada: “Quer dizer que o chamaram de nazista?”. E foi embora esfregando as mãos, com um enorme sorriso no rosto.

Madrugou também o Milton Ivan Heller, mas não foi para a Secretaria. Tomou rumo da Biblioteca Pública e ficou enfurnado ali por mais de dez dias. Revisou os jornais e revistas da época e levantou a história da tal Rádio Auriverde.

Enquanto isso, os pracinhas fizeram levantes em todos os cinemas do país que se dispuseram a programar o filme. Faziam piquetes com faixas de protesto e impediam muitas pessoas de entrar. Quando o filme estreou no Rio de Janeiro, Sylvio Back deixou o silêncio que guardava desde a estreia e escreveu um artigo em O Globo, afirmando que era filho de um judeu e todas as cenas e legendas eram reais. Encerrava o texto dizendo que havia feito “o filme mais odiado da história” por puro equívoco dos personagens. Quando Back vendeu os direitos de transmissão dos seus filmes para a TV Educativa, acho que no governo Fernando Henrique, voltou tudo de novo. Os pracinhas no Rio chegaram a tentar invadir a sede da Educativa no dia da veiculação do filme.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.