3:33Feliz aniversário!

por Thea Tavares

A gente cria os filhos para o mundo e isso é coisa que a vida nos joga na cara desde muito cedo. Dei moral para essa máxima quando a filha voltou da pré-escola, repetindo um axé que, naquela época, tocava muito nos programas de rádio e de TV, mas que ela não ouvia em casa. Mal sabia pronunciar os encontros vocálicos mais complicados da Língua Portuguesa e sequer compreendia as intenções veladas ou escancaradas da letra do tal chiclete musical e já conseguia repetir: “Lá vem o negão, cheio de paixão. Te catar, te catar, te catar”.

Passado o susto e longe dessa narrativa ser confundida com a defesa falso-moralista da educação em casa, ficou a graça da socialização, que desafiava qualquer receita pronta, fórmula fixa e rígida de controle sobre esse grande aprendizado de desprendimento que é a vida. Aliás, o episódio nos abriu uma enorme possibilidade de exercitar a leveza e a comunicação. Mas a prova dos nove veio mesmo com o desastre que ceifou a vida dos integrantes do grupo Mamonas Assassinas. Qualquer ser vivo em território nacional se aprofundou no tema. Foi a última vez que lembro da pequena ter assimilado “por osmose” um repertório que fazia os pais ranzinzas torcerem o nariz e, distante da presença da criança, rirem bastante daquela situação. Também ensinou que não adiantava empurrar goela abaixo outras referências, como as da MPB ou dos clássicos da erudição cultural, porque gradativamente ela foi montando sua própria playlist com base nas preferências, no divertimento, ritmos e nos gostos compartilhados com suas amizades. Hoje, posa de influenciadora no grupo de amigas.

De um jeito ou de outro, somos todos embalados pelas nossas escolhas. Não se passou muito tempo para que a máxima sobre criar os filhos para o mundo sofresse uma reforma, um ajuste a fim de se adaptar à realidade: criamos os filhos para eles mesmos. Acho, agora, que assim que tem de ser. Precisamos ser agentes facilitadores e não desarranjadores dessa beleza, saber e riqueza naturais da prole. Se formos bem inteligentes e humildes, perceberemos nosso papel e nossa responsabilidade em apenas e simplesmente lapidar suas personalidades, lustrar, dar suporte e oferecer as melhores condições para que brilhem sua essência. E mesmo isto não é tarefa nem um pouco fácil. Mas mais duro é lembrar de combinar com nosso ego e com a vaidade de querer moldá-los para exibí-los.

Essa sustentação já mostra o quanto é difícil escapar de preleções e despejo de regras. Sócrates que tinha razão. Aquela “só sei que nada sei” é uma das constatações mais edificantes que existem. Deriva-se dela um leque de possibilidades criativas, generosas, amorosas e esclarecedoras do lance de ensinar aprendendo constantemente. Mas por que me enveredei por esse caminho discursivo? Porque hoje é aniversário da minha pimpolha. Já se vão 29 anos da primeira vez que ouvi sua voz e um pouco menos que isso desde aquele episódio de exibição do axé music, registrado e guardado em fitas de formato VHS. Anos depois, as imagens foram transformadas em gravação de DVD. Quando resolver colocá-las dentro de uma pen drive para acessá-las mais facilmente talvez até esse mecanismo já esteja ultrapassado e nós, da geração assumidamente cringe, quem sabe, estejamos mais familiarizados com uma tecnologia de massificação das projeções de hologramas. É esperar para ver!

O que a memória e o coração guardam, porém, tecnologia nenhuma conseguirá reproduzir com riqueza de detalhes. No aniversário de dois anos de idade da filha, lembro de organizarmos a festinha no intervalo do recreio, que se resumia em confraternizar com os coleguinhas e com as professoras da turma aquele momento para não passar em branco. E sem saber ao certo até que ponto uma criança daquela idade compreenderia o propósito da celebração. Aniversário no mês de agosto também significava que a criança já tinha visto e participado de outros momentos assim, mas de comemoração do dia especial para outro coleguinha da turma. A rotina mudava na escola e em casa também durante os preparativos, por mais singelo e rápido que fosse o festejo na escolinha em si. Mesmo que fosse apenas para marcar o acontecimento. Mas, ainda assim, ficava aquela dúvida sobre a compreensão por parte da pequena a respeito do corre-corre todo.

Chegou o grande dia. Um pouco antes do intervalo e, conforme combinado com os pais, tirou-se as crianças da sala, organizou-se a mesa, ambientou tudo e, quando elas retornaram, sentaram-se nos lugares para cantar o “parabéns pra você” à aniversariante, que se posicionou ao centro, de frente para a vela e para o bolo, no lugar de honra. Ao primeiro som das palmas e da cantoria específica, a menina desandou a chorar, numa emoção que vertia abundante e soluçantemente daquele pequeno ser de apenas dois sábios aninhos de idade. Nenhum adulto ou criança na sala conseguiu não se emocionar junto. Além de compreender o significado da festa, ela sentia – e como! –, à sua maneira, aquela simbologia e convenção social com toda carga de sentidos que pudesse ser envolvida na tal celebração.

Foi quando compreendi o sentido de se criar os filhos para eles mesmos e de me colocar apenas na condição e na responsabilidade de um ourives do processo de formação, diante do compromisso de lapidar uma joia que já vinha completa e naturalmente especial desde sempre, precisando apenas entender o funcionamento do mundo à sua volta e contar com a segurança emocional de saber-se apoiada a cada passo de sua jornada, especialmente nos tropeços e nas necessárias repreensões.

Num dos anos seguintes, fomos ao parque de diversões. Era um dia de não poupar nenhum brinquedo e não deixar passar vontade. Claro que tudo dentro dos limites do alcance do bolso, da sensatez e da lábia dos pais no convencimento da criança. Ainda que exausta, na hora de dormir, a menina estava contrariada e abriu o maior berreiro…
– Mas o que foi, filha? O dia foi tão bom! Não fizemos tudo o que você queria?
– Não.
– O que foi que faltou?
– Você não me levou pra passear de helicóptero!
O palavrão foi inevitável. E auto ofensivo.

Se perguntar, em 2021, se quer festejar o aniversário, vou ouvir: – Acho brega!

4 ideias sobre “Feliz aniversário!

  1. Thea Tavares

    Fernando, a ideia é agradar e não tretar rsrsrs. Ela torce para o Coxa e para o Palmeiras. Prova de que não sou tirana rsrsrs.

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