por Sérgio Rodrigues
Funcional e velho de décadas, neologismo dá a medida de nosso retrocesso
Despiorar existe? Despiorar não existe? O colega Vinicius Torres Freire deixou em polvorosa as hostes bolsonaristas —e não só elas, o que é mais grave— com sua coluna “Economia dá sinais de despiora”, do último dia 9.
Sob o fogo cerrado de defensores do governo federal disfarçados de defensores da língua portuguesa (como se não houvesse aí uma contradição dilacerante), o colunista de economia da Folha foi ao Twitter se defender.
Explicou que, desde 2009, já aplicou o neologismo despiorar aos “governos Lula, Dilma, Temer e economias do mundo em geral”. E por que será que o jornalista gosta dessa escolha vocabular irreverente, em vez de se ater às palavras chanceladas pelos dicionários?
Essa é fácil: porque nenhuma língua cabe inteira em dicionários; porque só idiomas mortos não produzem neologismos; porque despiorar é um achado de funcionalidade.
Como sabe qualquer criança falante de português, despiorar não é um sinônimo perfeito de melhorar —dá conta de uma recuperação parcial após uma piora. Aquilo que despiora continua ruim, só que menos.
Embora introduza uma sutileza semântica útil e seja morfologicamente inatacável (des + piorar), a palavra ainda é considerada informal. Isso significa que deve ser evitada em textos severos ou engomados como bulas papais, pareceres jurídicos e redações do Enem —colunas de jornal escapam, ainda bem.
Vale acrescentar que o neologismo, disseminado nos dois lados do Atlântico, é tão antiguinho, tão rodado, que só não consta até hoje em nossos dicionários porque os lexicógrafos apreciam uma dieta à base de moscas.
Coube ao bom dicionário português Priberam a primazia no registro de despiorar. É um tanto vergonhoso que portugueses possam ser menos caretas com a língua do que nós, mas vergonha maior é que isso acontece muito.
O cochilo dos dicionaristas pátrios fica mais evidente quando se sabe que o verbo vivia na boca de um mestre da língua como Otto Lara Resende (1922-1992), um perfeccionista para quem todo texto podia ser reescrito e despiorado eternamente, sem jamais ficar de fato bom.
O jornalista Herbert Moses, presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) de 1931 a 1965, foi outro que empregou a palavra —curiosamente, num meio elogio ao órgão de censura do Estado Novo. Segundo ele, as relações da imprensa com o governo tinham despiorado após a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), em 1939.
Sabemos disso por intermédio de um artigo de 1946 em que o jornalista Belisario de Sousa classifica como “feliz expressão” a tirada de Moses. Trata-se do mais antigo registro de despiorar encontrado na imprensa brasileira pelo pesquisador e escritor Sérgio Barcellos Ximenes.
Contrapondo fatos sóbrios à histeria geral, Ximenes elevou o nível do quebra-pau internético há uma semana, ao apresentar no Twitter um punhado de registros do uso de despiorar em falas antigas de gente tão diversa quanto o músico Edu Lobo e o político Esperidião Amin.
Depois que o Brasil foi lançado pelo bolsonarismo num retrocesso vertiginoso em que direitos civis básicos, noções mínimas de civilidade e a própria democracia precisam ser defendidos dia sim, outro também, pode parecer aceitável que uma polêmica linguística tão desatualizada e tão desinteligente passe por normal.
Não é. É uma tristeza, o tipo de coisa que, depois de ler, seria maravilhoso poder desler. Vamos ter que despiorar demais.
*Publicado na Folha de S.Paulo