DIÁRIO DA GRIPEZINHA
Não gosto de me ufanar de meus pendores, mas ontem fiz um almoço que não saberia definir com outra palavra que não fosse supimpa. Botei as carnes na panela, batata, sardinha em lata, miojo, verduras frescas, caqui em fatias e o que mais tivesse à mão. Botei caqui por não termos cá pequi. Quando a coisa começou a feder, o ar foi tomado pelo aroma do inferno, a vizinha do cachorro a quem nego papel pra mijar, aquela do bebê cabrito que outrora desejei degustar assado. Isso quando pensava tratar-se de uma rês caprina que a senhora mocozava ilegalmente no apartamento. Pois é. Essa dona teve o desplante de me bater à porta pra perguntar se a privada tinha explodido. Já a vizinha de cima, mais educada, sapateava no assoalho, brindando-me com a lembrança de noites passadas na Andaluzia, naquele mesmo bar medieval onde Izabela assinou o maldito Édito de Allambra, que prejudicou meus antepassados.
De sobremesa fiz canjica. Lavei os grãos, um a um, com água oxigenada e sabão de coco. Deixei os milhos espalhados sobre jornais, escolhendo as páginas não mijadas pelo Jolim, se bem que ele nunca mija nos jornais e eu tenho que fazer o serviço dele, e dispus tudo no assoalho, levando o sol a bater em cheio para que cada grão ficasse bem seco. Botei uma generosa dose de azeite de oliva na panela – tem que ser de oliva; coisa boa – e fui deitando os grãos um a um, contei quinhentos e dezenove. Temperei com bastante salsinha, cebolinha, coentro, orégano, enfim, tudo o que tinha no dispensário. Botei canela também porque canjica sem canela, qual é a graça! Quando tudo estava bem refogadinho botei meia garrafa de leite de coco, e como não tinha me prevenido com leite de coco, botei dendê que é a mesma coisa. Aí, me lembrei que tinha leite de coco em casa, e que eu tinha guardado ele no armário dos remédios porque o Governo disse que se faltar água de coco no sangue é só meter leite da fruta nos canos. Despejei a garrafa na panela, o bebê cabrito pegou de berrar, um cheiro de satanás apossou-se da minha cozinha, e o nenê a berrar e a cozinha a feder, e olha lá a síndica vindo à toda velocidade, com o relho na mão porque agora Governo liberou geral esse lance de andar armado.
Filme: A LEI DO DESEJO (direção de Pedro Almodóvar), com Antonio Banderas, Carmen Maura e Eusebio Poncel). Na Terra da Imaginação, que muitos conhecem por Brasília, tem um poço. Você chega lá, escreve o desejo num papelzinho e joga dentro. Nesta película vemos cada personagem escrevendo em papelzinho e jogando. O último é um senhor bastante redondo, não que isso o deprecie, mas devia cuidar melhor da saúde. Ele escreve um papel, rasga, escreve outro, rasga, não sabe o que pedir. A cena final é o ator olhando para a câmara e dizendo: “O que eu queria era ser um meigo rapaz, magro e elegante, sem precisar me preocupar com a Saúde”.