6:19MENINOS NÃO BRINCAM COM TIGRES

de Nelson Padrella

Junto ao rio, os grandes felinos esperavam que as gazelas chegassem. Os crocodilos também sabiam a hora da tarde que os bandos de animais acorriam a beber a última água antes que caísse a noite. Os lagartos ficavam escondidos em si mesmos, cor de água, só os olhos de fora, esperando com paciência que o alimento viesse ter à boca. Os leopardos também estavam escondidos em si mesmos, no silêncio de si mesmos, nenhum movimento que os denunciasse, e buscavam ler no mormaço da tarde as mensagens que o pequeno vento carregava. Os sáurios, na água, tinham uma leitura diferente dos felinos, não precisavam perscrutar o vento para saber da chegada dos animais que vinham roubar sua água e em troca os obsequiavam com o banquete das suas carnes. Felinos e crocodilos tinham como que um pacto invisível, mergulhados em seu silêncio e em sua invisibilidade.

Mas, acima de crocodilos e de leopardos havia um animal mais poderoso, e esse não matava só para se alimentar. Matava, destruía, disseminava o mal por onde fosse por sentir prazer nisso ou porque lucrava algum dinheiro.

Num fim de dia, quando os animais aguardavam que as gazelas viessem, o cheiro que chegou desenhado no ar alertava para o perigo que mais temiam. Os homens chegaram com suas armas e arapucas e espalharam o pânico entre os felinos. Então, nenhuma carne alimentou o bando de gatos e nem dos bichos escondidos na água. Alegre apenas o acampamento dos invasores, agora ricos de peles e de filhotes. Os pequeninos sabiam que nunca mais iriam ter a proteção dos pais e nunca mais iriam aprender a caçar nas savanas porque agora seriam apenas objeto de diversão para as crias dos invasores.

Nos circos de muitas cidades os filhotes aprendiam as rigorosas lições ministradas pelos homens. A amplidão da selva substituída pela prisão. Tiveram que aprender a ser dóceis à custa de tortura. Logo tornavam-se adultos, belos gatos pintados viajando pelo mundo, mas nada vendo desse mundo porque as gaiolas tolhiam… Nunca aprenderam a caçar, e isso era como um buraco que havia em seus espíritos – que leopardos têm espírito, como alguns homens. Comiam na jaula a carne morta, fria, e alguma coisa vibrava em sua memória dizendo que havia outra carne muito mais importante do que essa, e que tal alimento devia ser valorizado pela ousadia da caçada. Cada um daqueles pequenos postos em cativeiro esperava que dia viria em que experimentariam essa aventura, a de conquistar o alimento, a carne viva sendo rasgada por suas garras, o sangue quente aquecendo sua vitória.

E o circo chegou à Curitiba.

Foi montado em campo aberto, próximo a um capão ainda preservado, com muitos pinheiros, canelas e aroeiras, e onde havia uma fonte natural onde as pessoas de perto iam buscar água. As casas dessas pessoas eram geralmente enfeitadas com lambris – herança polaca trazida pelos primeiros imigrantes.

Ao entardecer já a música atraía as pessoas mordidas pela curiosidade da coisa nova. Os cartazes colocados em pontos estratégicos traziam de volta a infância de cada um. Mas era o grande toldo armado no campo o que verdadeiramente levava às pessoas uma emoção diferente de tudo. Ao fundo, guardados da curiosidade, os animais do circo emitiam sons que buliam com a imaginação. Pequenos macacos que apareceriam dançando no picadeiro; os cavalos enfeitados com panos coloridos e que seriam montados pela bela amazona semivestida; as aves onde o azul, o amarelo e o vermelho coexistiam em harmonia. E o tigre. Não importava que não fosse tigre, que fosse leopardo. A palavra tigre mexia muito mais com os medos atávicos. A voz desse animal causava calafrio nas pessoas, e elas riam um riso nervoso, decerto inventando a vida em perigo. Os sons misturavam-se na tarde quente do verão curitibano. O chiado dos primatas, o bufar dos equinos, o grito das araras, o urro do grande gato amarelo falando com a solidão, tudo vibrava na tarde e encantava as pessoas que se deixavam atrair pela magia do circo. A bilheteria já oferecia a possibilidade de entrada. Um vendedor de amendoim torrado rondava por ali. Um único cachorro apareceu, fiel ao amo, mas logo desapareceu assustado por cheiros e barulhos inéditos. O dia não havia escurecido de todo e já a casa recebia os primeiros visitantes, crianças na maioria trazidas por familiares.

Na realidade, todos estavam crianças sentados na arquibancada, nas cadeiras de luxo e na primeira fila, colada ao picadeiro. As cadeiras de luxo só tinham luxo no nome; a novidade é que eram acolchoadas e isso dava um pouco de conforto a pessoas de mais idade. O luxo mesmo era sentar na primeira fila, receber o espetáculo na cara, sentir o cheiro dos cavalos, o levantar da serragem, a ameaça das feras. Olhar o olho do tigre. E quando o homem de cartola gritou senhoras e senhores, boa noite, o espetáculo vai começar, cornetas foram tocadas e dois palhaços entraram fazendo cambalhotas. Uma onda de alegria envolveu os presentes, principalmente as crianças que riam e gritavam, enquanto os palhaços perseguiam-se, chutavam um a bunda do outro, a cada chute estourava um traque, e de repente um dos palhaços trazia uma arara, o outro tomava um susto e corria buscar um bando de cachorros lanudos que estavam treinados para alegrar a noite. Depois vieram os trapezistas voando no espaço e arrancando gritos mal contidos. Depois, a rede de proteção foi retirada para que entrassem os cavalos paramentados com adereços dourados e a amazona montava e desmontava enquanto os animais faziam o círculo da arena; e um após outro todo o programa foi apresentado aos presentes. Para o final ficou a parte do tigre. Para as crianças era apenas um gato grande com dentes maiores do que os dos gatos de casa, apenas muito mais belo. A jaula foi posta no centro do picadeiro para que todos tivessem a visão perfeita do que ia acontecer. A fera reagia ao estalar do chicote do domador, subindo e descendo de um banquinho, saltando por dentro de argolas e, finalmente, a cena que causou arrepio nas pessoas e possivelmente alguns desmaios quando o homem abraçou a fera e o tigre abraçou o homem, as garras ganhando as costelas do domador, os dentes enormes junto à garganta daquele maluco. Debaixo da lona da tenda o silêncio era total. Foi então que aconteceu o que todos temiam. Quando o tratador voltou as costas à fera e ia se afastando, o animal pulou sobre o infeliz, abraçando-o e rolando com ele pela serragem. Quando as pessoas atinaram para o acontecimento da tragédia, o diretor do circo, vestindo sobretudo uma cartola e portando uma graciosa bengala pedia que todos se acalmassem, que nada tinha acontecido. O tratador ergueu-se do chão, sempre abraçado ao tigre, e o circo explodiu em palmas e gritos.

Na manhã seguinte, todos queriam ver o tigre no cativeiro. Piás de calças curtas, meninas segurando o medo, tias entusiasmadas. O tratador avisava: deixassem o animal em paz. Os meninos cercaram o homem – queriam ver o tigre. A menina driblou a vigilância e, enquanto o homem estava ocupado com a piazada, passou por trás dele e foi até a jaula. O bicho estava como que esperando por ela. Foi isso o que as crianças disseram depois para a mãe da menina. Como se o tigre estivesse esperando por ela. Porque ela foi, pé ante pé, até a jaula. Ele parecia estar dormindo, mas só fingia. Esse sempre foi um jeito que os bichos inventaram para não serem incomodados, o de fingir que dormem. A menina não conhecia o segredo e foi por isso que se aproximou perto demais. Passou a mão nas listas, alisou os pelos com carinho. Foi quando o tigre abandonou o truque de fingir que dormia e lançou os olhos na visita. Os olhos amarelos da fera dominaram a menina, mas o olhar curioso da criança também dominou a fera. A menina cantou uma canção que falava de tigres, e ele emitiu um miado e foi o único som emitido pela fera. O tigre já não sabia falar e aquela melodia despertou nele quem sabe se lembranças do tempo em que a liberdade era uma coisa tão simples que ele não precisava lutar para conquistá-la. Talvez o próprio tigre tenha se admirado do som que produziu, mas ele estava tão feliz, tão feliz! Ele aproximou-se da menina, manso gato assustado, e as pessoas que viram isso disseram que ela era uma domadora de tigres. Depois, o animal se espreguiçava e ela brincava mais com ele, navegando nas manchas que o deixavam tão lindo. Um dos meninos viu e ia dizer olha lá, mas apenas se fascinou e ficou parado, apavorado. O tratador voltou-se, em câmara lenta, e então ele viu o tigre pousar as unhas no braço da menina. Correu na direção da jaula enquanto os meninos punham as pernas para correr. Na jaula, a criança acariciava a fera e em troca recebia lambidas e se deliciava com os sons roucos que o felino puxava da garganta. O homem do circo arrancou-a dali, zangado, e o tigre também estava zangado porque o deixavam mais uma vez sozinho.

A notícia daquela aventura correu o bairro. Todas as crianças estavam proibidas de voltar lá. Então, uma notícia nova espalhou um terror real sobre aquela parte de Curitiba. O tigre tinha escapado. Alguém teria mexido na tranca, deixado a gaiola aberta. Corre daqui, corre dali, naquele corre-corre catavam as crianças, guardavam os cachorros, os gatos, as galinhas. E trancavam-se em casa, assustados. De casa, telefonavam aos maridos, irmãos e quem mais fosse, que um tigre feroz tinha escapado da jaula do circo e ameaçava a todos ali, pessoas e bichos. A Imprensa já tinha chegado e os fotógrafos registravam o que lhes interessava – o circo armado, um rosto assustado de mãe, a jaula aberta.

Quando a Polícia do Estado chegou um novo medo nasceu nos cidadãos. Aqueles homens armados também representavam perigo real. Os soldados davam ordens aos moradores da vila, não faziam pedidos com educação, mandavam como se fossem donos de tudo e de todos.

            Mas, antes dos soldados, teve a história da menina. Quando o tigre escapou ela sabia onde encontrar-se com ele. Numa parte do capão, onde um rio – antes, um risco de água no chão que existia só para atrapalhar as formigas – tinha a água de que ele iria precisar. E ela foi ao encontro. E a fera estava lá. A menina parou, subitamente assustada. Nesse momento ela se deu conta de que estava longe de casa, sozinha, perto de um animal em que não se pode confiar. O tigre lançou um miado diferente daquele rosnado que ela já conhecia, e avançou. Ela sentiu medo e gritou Tigre! Na grama do capão, onde o sol criava uma colcha de luz, os dois brincavam como velhos amigos, rolando no chão, felizes.

Os meninos chegaram e viram a menina brincando com o grande gato amarelo. Quiseram aproximar-se. Foram indo, temerosos, mas com vergonha de sentir medo. Venham, ele é manso, a menina disse. Os mais audazes aproximavam-se, um passo de cada vez. Mas um deles, um que havia cutucado o animal enquanto esteve prisioneiro, sentiu-se culpado e fugiu. Não foi longe. Talvez o animal tenha reconhecido nele seu algoz, talvez quisesse que também esse garoto participasse da reunião. Num salto, pôs-se na perseguição do fujão, pegou-o quando já alcançava o descampado, saltou sobre ele, derrubando-o na grama do campo. O piá mijava-se todo, defendendo-se das mordidas com que a fera o afagava, e então a menina gritou Tigre!

O grande gato abandonou a brincadeira e atendeu ao chamado. A vítima não teve vergonha de chorar na frente dos amigos; abandonou o local do folguedo, e buscou sua casa. Agora todos sabiam onde o tigre estava.

A Polícia chegou impondo a ordem, mandando nos cidadãos. Obedecessem, que era para o seu bem. Ninguém poderia sair de suas casas até que o problema fosse solucionado. O pessoal do circo também estava ali, junto ao capão, todos muito nervosos. Os palhaços sem a maquiagem faziam tristes figuras. O dono do animal era o mais exaltado. Pedia aos soldados que o deixassem entrar no mato, que o animal era obediente, ele mandava o tigre voltar para a jaula, ele voltava.

Os soldados posicionavam-se junto às viaturas. Que não atirassem – o tratador pedia. Que o animal obedecia como uma criança – o homem dizia. O tigre ouviu a voz do amigo. Ouvir aquela voz significava alimento, que era daquelas mãos que recebia a comida, o afago. Ele apareceu na boca do capão. A figura majestosa do animal causou terror e fascínio aos moradores da vila, que se protegiam atrás das viaturas. Imediatamente, a jaula foi aberta, um pedaço de carne crua servindo de isca. O tigre levantou a enorme cabeça, cheirando o ar. Viu o homem que o alimentava, viu sua casa aberta, a convidá-lo, reconheceu as pessoas do circo. Não reconheceu os homens fardados segurando seus brinquedos. Não deu importância aos soldados. O amigo caminhava em sua direção, confiante. Correu ao encontro dele, dando pequenos saltos e então os policiais dispararam apanhando o animal em pleno voo.

Uma ideia sobre “MENINOS NÃO BRINCAM COM TIGRES

  1. Fernando

    É bom avisar o Padrella que onde ele escreveu lambris certamente ele queria dizer lambrequins.

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