por Thea Tavares
Uma amiga, com quem eu não falava há anos, me encontrou pelas redes sociais e nos colocamos a atualizar a prosa que ficou na gaveta por esse tempo todo de separação. Na última vez em que nos vimos, eu estava casada e ela não. Gastei duas frases na explicação da mudança de estado civil, sem economia de verbo. A bem da verdade, bastava um sinal ortográfico.
Daí, ela se pôs a descrever em detalhes seu cotidiano de aposentada e a falar sobre essa união recente: “Não tem nada de mais, decidimos fazer companhia e cuidar um do outro“. Espera lá! Como é que não tem nada de mais uma decisão corajosa, madura e bonita dessas? Tem compromisso mais precioso que pactuar a responsabilidade do cuidado e do apoio entre duas pessoas? Daí, ela riu, misturando à sua timidez nata o tempero de uma certa vaidade e orgulho diante da atitude que tomou. Sempre foi muito comedida e modesta nas suas exposições, quase como que erguendo um escudo refratário à inveja alheia. Quietinha, mas não desanimada, ela faz mais o tipo de quem come pelas beiradas. Um jeito mineiríssimamente discreto e ao mesmo tempo altivo de ser. “Pois é!”, só concordou.
Isso é o avesso do “infinito enquanto dure” no soneto do Vinícius, pensei. É um planejamento estratégico dos mais eficientes e que não deixa margem para dúvidas. Comecei a listar mentalmente que características ou situações poderiam me remeter à mesma decisão e escolha da minha amiga. O que outros seres, já do feitio passionais e espalhafatosos, colocariam na mesa para racionalmente estabelecerem com maturidade e desprendimento um pacto desses? Veio à mente, então, o Rubem Alves, guru de todas as horas e reflexões. Ele puxaria lá da coletânea de suas crônicas em “O Retorno e Terno” a história da Xerazade e de suas mil e uma noites de prosa com o sultão, mas também nos remeteria nessa explanação àquela comparação que tece sobre as relações existentes entre partidas de tênis e de frescobol com os casamentos bem sucedidos.
Nesta última, ele pergunta se o leitor se imaginaria conversando para o resto da vida com uma pessoa de modo a não faltar assunto? De modo a, por mais acúmulo de conteúdo que se traga no repertório de encantos e na eloquência, poder sentir prazer tanto em ouvir quanto em falar e exibir-se. Bingo! Está aí! Nem avancei na confecção da tal lista de motivos porque essa primeira razão rende base suficientemente sólida para se assentar sobre ela o compromisso entre minha amiga e seu parceiro nessa caminhada de envelhecimento e de cuidados mútuos.
A ponto de vermos nesse acordo de respeito e de cumplicidade alternarem-se momentos de interação com os de privacidade e de silêncios nada ameaçadores ou ativadores das inseguranças que atormentam. É que cada um precisa, de tempos em tempos, ter preservado seu espaço para se reconectar com a essência, fortalecer-se, a fim de voltar a assumir um lugar e um papel com liberdade na vigência desse tratado estabelecido.
Mas você, romântico, um tanto quanto frustrado, pode me perguntar, quase em tom acusatório: “Fala sério! Você conseguiria mesmo não dar ouvidos e ignorar as batidas aceleradas do coração nessa escolha?”. A resposta é: “E quem lhe garante que, no caso deles, não houve disparos no ritmo e na frequência cardíaca ou outras afinidades mais trepidantes? Apenas combinaram que ninguém, além dos dois, precisaria saber disso”. Até porque, diante do que se revela por nossa posição na fila da vacina, nessa altura do campeonato, esses picos de euforia bem que poderiam ser reprimidos ou confundidos com agravos de saúde.