6:12Cláudio Abramo

por Mário Montanha Teixeira Filho

O maior jornalista cujo trabalho a minha geração teve oportunidade de conhecer foi Cláudio Abramo. Não me parece haver dúvida quanto a isso, embora afirmações assim, taxativas, possam ser contestadas. Paciência. Devoto a ele a paixão que adquiri pelo jornalismo, numa fase da minha existência em que repartia o estudo do direito (e seus tratados aborrecidos) com leituras ansiosas das notícias diárias que vinham das bancas espalhadas pelas ruas da minha cidade.

A década ainda era a de 1970, e a ‘Folha de S.Paulo’ atravessava uma revolução gráfica e editorial importante, a me encher de curiosidade. O responsável por tudo aquilo estava lá, nas páginas do jornal, em artigos certeiros, análises de temas da atualidade, da política nacional e internacional, da literatura clássica, da vida. Tão logo eu abria aquele amontoado de tinta, papel e informações, característico em forma e odor, buscava a coluna do Cláudio Abramo. Tinha a certeza de que encontraria nela a síntese da edição do dia, a avaliação dos fatos, das articulações subterrâneas de um governo sem povo, debilitado por lutas internas e sob a pressão de rebeliões operárias que desafiavam os tanques da ditadura no ABC paulista.

Cláudio Abramo foi um autodidata influenciado pelo avô anarquista e por irmãos trotskistas. Não se filiou a nenhuma corrente política, não ostentou diplomas da academia e nem se dedicou a escrever livros, talvez por não ter encontrado o seu “tempo interior”. O jornalismo ocupou a quase totalidade dos seus esforços, embalado por um acervo cultural vastíssimo. Escrevia sobre os mais variados assuntos, sempre com profundidade, consciente da sua grandeza. A humildade, aliás, não era parte do caráter de Cláudio Abramo, que não via nenhum problema em se colocar, com sobras de razão, entre os mais destacados no seu campo de atividade.

Ninguém, é provável, teve mais intimidade com a comunicação, em suas facetas múltiplas, do que Cláudio Abramo. Ele sabia de tudo. Antes de ter transformado a ‘Folha’, reformulou completamente o ‘Estado de S.Paulo’. Foi na década de 1950, quando, a convite de Júlio de Mesquita Filho, assumiu a secretaria do jornal. Ali, adotou medidas importantes, como a redução do tamanho das páginas (o termo “jornalão”, utilizado quase sempre em sentido pejorativo, era referência à impressão do ‘Estado’ em formato exageradamente grande), a transferência de sede e o controle da publicidade e do fechamento da redação, entre muitas outras. Concluiu as mudanças no início dos 1960. Em 1964, ano de ruptura institucional – o golpe militar –, ficou desempregado.

A lembrança dessa figura tão emblemática me veio agora, reforçada pela releitura de ‘A regra do jogo’, de 1988, publicação lançada menos de um ano após a morte do jornalista, em agosto de 1987. A edição que tenho comigo é a de 1997, da Companhia das Letras. No belo prefácio, assinado por Mino Carta, uma advertência: “este livro convocaria os escrúpulos de Cláudio Abramo, podem apostar”. O motivo: “Cláudio tinha muitas reservas em relação a coletâneas de artigos e crônicas publicados pela imprensa, […] e não publicaria como livro aquilo que não tivesse sido imaginado, planejado e escrito como livro”. Felizmente, para nós, mortais, essa norma proibitiva foi rompida por parentes, filhos e amigos do homenageado, responsáveis pela organização do livro.

A obra é dividida entre depoimentos gravados por Cláudio Abramo num período de pouco mais de dez anos e a reprodução de alguns dos seus artigos, sem ordem cronológica. Lição de jornalismo em pouco mais de 270 páginas, é o retrato de tempos, lugares e pessoas que não existem mais. Ao observar o cenário contemporâneo, de hegemonia de interesses antipopulares, de jornalistas submissos às ordens de seus patrões, sem nenhum rasgo de independência política – há exceções, evidentemente, mas estou a me referir ao padrão vigente no tempo estranho de agora –, penso na tristeza que tomaria conta do velho Abramo caso estivesse vivo. O triunfo do reacionarismo certamente lhe provocaria uma mistura de raiva, inconformismo e náuseas: “tenho muita dificuldade de trabalhar com gente de direita, porque a direita brasileira […] é fisiológica, e acho muito difícil conviver com pessoas desonestas, não tenho muito jogo de cintura para isso”, dizia. E mais: “essa burguesia nacional execrável desenvolveu toda uma cultura ancilar, dependente, conformista e submissa; basta ver o que dizem e escrevem alguns de nossos intelectuais, uns abertamente cooptados por dinheiro (dólares), outros, por desespero existencial”. Desde então, os motivos para as queixas só aumentariam.

O Brasil mudou – não necessariamente para melhor –, e Cláudio Abramo não viu. Faltou-lhe um pedaço a mais de vida para conferir o resultado da assembleia constituinte que o animava – a decretação solene do fim da quartelada de 1964, um regime de força cruel e fracassado –, ou para acompanhar o embuste da eleição presidencial direta de 1989, que levou ao poder Fernando Collor de Mello, um playboy fantasiado de “caçador de marajás”. Faltou-lhe vida para ver a ascensão do neoliberalismo destruidor e entreguista de Fernando Henrique Cardoso, a experiência conciliadora da frente popular encabeçada pelo Partido dos Trabalhadores, o (novo) golpe da ultradireita, amparado por juízes e procuradores de uma força-tarefa obscura, aninhada na “república” de Curitiba, e a tragédia do país entregue à boçalidade de Jair Bolsonaro e à devastação impiedosa da peste.

Sentimos falta de Cláudio Abramo nesses anos todos, da atualidade da sua crítica, do conteúdo fulminante dos seus diagnósticos. Eis um deles, que permanece: “no jornalismo brasileiro de hoje se fazem coisas ignominiosas: […] são os pequenos grupos, as pequenas panelas que dominam as redações e que decidem quem é bom e quem não é”. Ensinamento triste e verdadeiro deixado no livro póstumo, entre tantos outros. Fiquemos com ele, com todos eles, então. Para que possamos seguir, para que não se perca de vez a esperança.

(Uma homenagem atrasada ao Dia do Jornalista, comemorado em 7 de abril).

4 ideias sobre “Cláudio Abramo

  1. Paulo+Motta

    Que bom ler sobre Claudio Abramo, que também acho que foi o melhor jornalista do Brasil. Pena que o Estadão e o Folhão o apagaram da memória, coisa medíocre, logo o que ele tinha horror. Parabéns pelo belo texto.

  2. RAUL GUILHERME URBAN

    Quem ingressou no Jornalismo ainda no fim da década de 1970 – meu caso -, e batalhou até a aposentadoria (em 2017), e que atuou, seja onde fosse, no Brasil, em jornais, miúdos ou graúdos, deve um preito a Claudio Abramo, que soube nos legar ensinamentos inesquecíveis de um ofício que devemos honrar até o último dos dias. À geração de Abramo, anterior à minha; à geração de que faço parte, e, em especial, aos noviços que procuram fazer do Jornalismo algo honroso, que fiquem as aulas de Mestre Abarmo como referência num país hoje tão ausente de ideias. Salvem-se as honrosas e boas exceções – elas existem e são referência.

  3. Célio+Heitor+Guimarães

    Grande Da Montanha! Só você mesmo para prestar essa merecida homenagem ao mestre Cláudio Abramo. Eu também era fã e admirador de Cláudio. Aliás, de toda a família Abramo, incluindo a magnífica Lélia do teatro, cinema e TV. Parabéns pelo bonito e certeiro texto, meu amigo. São exemplos como o de Cláudio Abramo que nos movem hoje em dia, nesses tempos tenebrosos.

  4. Francisco Lima

    Emocionante homenagem ao inesquecível Jornalista (com J maiúsculo) Cláudio Abramo! Parabéns pelo texto!

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