Do jornal O Estado de São Paulo
A principal associação de médicos defensores do chamado tratamento precoce contra a covid-19, que inclui medicamentos ineficazes contra a doença, tem como um de seus apoiadores um grupo empresarial goiano que fabrica a ivermectina, um dos remédios que compõem o tratamento. A companhia é a responsável por desenvolver e administrar a plataforma online disponibilizada no site da associação aos médicos interessados no tema do tratamento precoce.
A Associação Médicos pela Vida é o principal grupo de profissionais a apoiar o uso de remédios sem eficácia contra a covid, como a hidroxicloroquina, a azitromicina e a própria ivermectina. Foi iniciativa da entidade a publicação de informes publicitários favoráveis ao “tratamento precoce” em oito jornais de grande circulação no País em fevereiro e a colocação de outdoors propagandeando a terapia ineficaz em várias cidades brasileiras. Representantes da associação também já se encontraram, em setembro do ano passado, com o presidente Jair Bolsonaro, outro apoiador das terapias inócuas.
A partir de março, no auge da pandemia no País, a entidade passou a realizar em seu site “super lives multidisciplinares” exclusivas para médicos nas quais são ensinados os protocolos de tratamento. Para o evento, a associação disponibilizou aos profissionais com CRM uma plataforma online na qual, além de assistir às lives, os médicos podem assinar os manifestos do grupo, se registrar em um cadastro público de doutores que prescrevem os remédios e acessar materiais sobre o tema. A plataforma, chamada de iMed, foi desenvolvida e é mantida pelo Grupo José Alves, proprietário da farmacêutica Vitamedic, uma das fabricantes da ivermectina no Brasil.
A ligação entre a entidade e a empresa, que pode configurar conflito de interesse segundo o Código de Ética Médica, foi exposta em uma das lives fechadas promovidas pela associação. O elo foi revelado pelo jornalista independente Victor Hugo Viegas Silva em sua página no site Medium e confirmado pelo Estadão, que também teve acesso aos vídeos das lives.
No evento citado, realizado em 10 de março, um dos coordenadores da associação, o oftalmologista pernambucano Antônio Jordão, convida o diretor de tecnologia do grupo empresarial, Carlos Trindade, a apresentar a plataforma criada para os médicos. Na introdução do convidado, Jordão pede à Trindade que explique “como os médicos vão fazer a interação com a nossa plataforma atual graças a ajuda de vocês”.
Ao apresentar o sistema, Trindade detalha as funcionalidades da plataforma e explica como os médicos devem proceder se tiverem dificuldades técnicas no sistema. “Nesse site, nós temos algumas melhorias que fizemos ao longo das últimas semanas. […] O primeiro ponto principal é como os médicos se comunicam com o grupo técnico e com o grupo de apoio para ter os seus problemas resolvidos: é através do centro de suporte que nós criamos”, detalha o diretor, destacando em seguida que a empresa montou uma equipe exclusiva para atendimento aos profissionais.
O número de telefone disponibilizado no site da associação para suporte aos médicos tem código de área 62, de Goiás, onde está a sede do grupo empresarial, embora a entidade e a maioria dos seus coordenadores sejam pernambucanos.
Na apresentação, Trindade, que também é reitor da Unialfa, universidade goiana de propriedade do Grupo José Alves, também demonstra que a corporação, além de ter desenvolvido a plataforma, é quem a administra e tem acesso aos dados de todos os médicos cadastrados. Na live, ele mostra aos participantes a tela de gerenciamento do sistema, na qual aparecem 9.691 médicos registrados.
O diretor também destaca que o grupo empresarial abastecerá a plataforma com uma biblioteca na qual serão publicados artigos que “comprovam as evidências científicas” do tratamento precoce e notícias sobre o tema. “Registraremos todas as notícias que saem em mídia que falam sobre cidades, prefeituras e empresas que estão adotando o tratamento precoce e preventivo, e quais são os impactos da adoção desses tratamentos”, afirmou.
Apesar do apoio claro do grupo empresarial que produz a ivermectina aos médicos defensores do tratamento precoce, o coordenador da associação não deixa claro na live nem no site da associação tal conflito de interesse, o que é obrigatório pelo Código de Ética Médica.
Relações de médicos com a indústria farmacêutica não são proibidas, mas devem ser obrigatoriamente declaradas, segundo prevê o artigo 109 do código. De acordo com o documento, é vedado ao médico “deixar de declarar relações com a indústria de medicamentos, órteses, próteses, equipamentos, implantes de qualquer natureza e outras que possam configurar conflitos de interesse, ainda que em potencial”.
Diante da falta de evidências de eficácia da ivermectina contra a covid-19, seu uso foi desaconselhado até pela farmacêutica Merck (MSD no Brasil), fabricante original do produto. A farmacêutica estrangeira, porém, foi contestada pela Vitamedic, um dos laboratórios que produz a versão genérica do medicamento no Brasil.
Em nota emitida em fevereiro, logo após a manifestação pública da MSD desaconselhando o uso, a empresa brasileira disse desconhecer “qualquer estudo pré-clínico que essa empresa tenha realizado para sustentar suas armações quanto a ação terapêutica” da ivermectina no contexto da covid-19.
Números do Conselho Federal de Farmácia (CFF) mostram que o total de unidades vendidas de ivermectina subiu 557% em 2020 em comparação com 2019, sendo dezembro o mês recordista de vendas da droga. Como revelou o Estadão em março, o uso indiscriminado desse e de outros medicamentos do chamado kit covid já está sendo associado a quadros de hepatite medicamentosa. Ao menos cinco pacientes foram para a fila do transplante de fígado após terem o diagnóstico do quadro.
O Estadão procurou a Associação Médicos pela Vida para esclarecer qual é a relação da entidade com o Grupo José Alves e, por consequência, com a Vitamedic. A reportagem enviou perguntas sobre qual tipo de apoio foi fornecido pela empresa à associação e por que essa relação não foi declarada no site da entidade, como prevê o Código de Ética Médica. Também questionou se o grupo empresarial fez repasses financeiros à associação e aos seus integrantes. O Estadão perguntou ainda quem foram os financiadores dos informes publicitários publicados em jornais e dos outdoors. Nenhuma das perguntas foi respondida.
A assessoria de imprensa da associação prometeu na terça-feira, 13, que um dos coordenadores do grupo daria entrevista para esclarecer todos os temas e destacou que a associação “não tem nada para esconder”. Nesta quarta, porém, a entidade recuou. Por meio de sua assessoria, disse que os coordenadores haviam se reunido e decidido não se pronunciar sobre o tema.
A reportagem também tenta, desde segunda-feira, 12, contato com o Grupo José Alves para esclarecer o tipo de apoio dado à associação, mas não obteve retorno até agora.
Médicos expondo pessoas ao risco de morrer para ganhar um jabá, uma gorjeta, comissão, patrocínio, tico-tico, pixuleco? É isso mesmo?