por Conrado Hubner Mendes
Tribunal disfuncional e ingovernável abre as portas ao chicaneiro e ao autocrata
O diabo não tem nada a ver com isso. Apenas agradeceu ao STF e comemorou os templos cheios de gente nos cultos virulentos do domingo de Páscoa. O desprezo aos protocolos sanitários foi a requintada homenagem anticristã ao tribunal.
A decisão do ministro Kassio Nunes, tomada na noite de sábado (3), não foi improviso. O episódio não se resume a juiz mal-intencionado e chicaneiro que, num gesto calculado para consumar efeitos irreversíveis, driblou o plenário e encomendou milhares de mortes.
Optou por resolver, sozinho, na véspera da missa, com base na cínica alegação de “urgência” e “perigo da demora”, caso dormente em sua mesa havia cinco meses. Logo ele, como lembrou Felipe Recondo, que no Senado assegurou: “Sempre prestigio o colegiado.”
Essa arquitetura de baixa institucionalidade e alta libertinagem é produto de desconstrução meticulosa ao longo dos anos. Num tribunal ingovernável, a instituição desaparece, e chicaneiros se lambuzam. Prevalecem o arbítrio e o interesse. O argumento jurídico vira verniz grotesco que nada disfarça.
O STF segue sequestrado por poderes de obstrução distribuídos a ministros. A chicana pode ser ativa, quando ministro toma decisão monocrática, evita plenário e produz efeitos concretos quase sempre irreversíveis; ou passiva, quando deixa na gaveta (como relator, presidente, ou por pedido de vista) e joga o caso para um futuro de sua escolha. Ambas forças centrífugas boicotam o colegiado.
Autocratas precisam de tribunais servis. Há técnica para isso: aposentar juízes, aumentar número de cadeiras e ocupá-las com apologistas ou comprá-los. O STF oferece ao autocrata a alternativa peculiar do “basta um”: basta um Kassio Nunes para paralisar o tribunal. Se completar com um André Mendonça ou Augusto Aras, melhor ainda. O “soldado e o cabo” não vestem farda.
O texto da decisão de Kassio Nunes é pura confusão gramatical de alguém não familiarizado com interpretação constitucional. Ou pura desfaçatez. Nem os precedentes citados se aplicam. Os múltiplos erros já foram listados por analistas.
Mas, no fundo, esgotar nossa energia discutindo se a decisão foi equivocada é a isca diversionista que mordemos por conta própria. Levamos a sério argumentos do STF quando nem ministros os levam.
Mais urgente perguntar o que permite essa aberração institucional. Não há conversa honesta sobre segurança jurídica sem tocar na arbitrariedade procedimental. Não surpreende que ministros ignorem o assunto quando palestram em bancos e empresas. Palestra judicial para atores privados desse tipo, a propósito, é outra aberração ética e jurídica.
Criticar decisão disparatada e apelar por outra decisão que a corrija é o luxo intelectual dos juristas. Mas ofusca falhas das engrenagens. O tribunal não padece só da indigência do ministro A ou B nem da infeliz decisão C ou D. O edifício está corrompido. Tudo depende do acaso, da pressão externa e do capricho individual.
Kassio sujou as mãos do STF na cadeia causal do morticínio. Mas as mãos do STF não estavam limpas. A chicana é hábito compartilhado.
Barroso continua a não decidir sobre o dever de Rodrigo Pacheco abrir a CPI da pandemia; Rosa continua em silêncio sobre decreto de armas, enquanto o país compra fuzis e munições; Gilmar acha que política de intimidação por meio da Lei de Segurança Nacional merece exame “nem tão devagar, nem tão depressa”.
São casos juridicamente elementares. Até a acusação vulgar de “ativismo” seria forçada. Mas são casos politicamente incômodos. Não é para isso que deve servir tribunal constitucional?
Na segunda-feira (5), Gilmar soltou liminar na direção oposta e entrou na pauta de plenário desta quarta-feira (7). Gilmar, curiosamente, tinha em mãos outro caso sobre o tema dos cultos. Devia estar com Kassio, pelo mecanismo da prevenção. O serviço do tribunal errou, e Gilmar fez que não viu. A Páscoa passou, o vírus já circulou, e Kassio deve “perder” (apesar de já ter ganho).
Mas podemos respirar aliviados. Segundo notícia, Bolsonaro mandou Braga Netto procurar o STF para “estancar a crise militar” e formar uma “coalizão anti-impeachment”. Fux e Toffoli o receberão com chá de ervas e bolinho de laranja. Toffoli chama isso de “diálogo institucional”. Fux amou o eufemismo.
Se tudo sair como planejado, poderemos em breve ver Bolsonaro pacificar o “meu tribunal” e juntá-lo ao “meu Exército”, “minha polícia”, “minha PGR” e “minha AGU”.
*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
*Publicado na Folha de S.Paulo
Bolsonaro ao chegar o fim do mandato terá a nítida sensação que governou para manter se em pé.
O judiciário, STF, atua para agradar gregos e baianos se desvincula do ordenamento jurídico tornando agente político.
Ora, impor a liberação de templos para satisfazer o desejo de bancadas e associações não coaduna com preceitos de quem tem a função de pacificar interesses, quando se despreza a vida.