por Thea Tavares
Descascava batatas para o almoço quando a voz dela me veio nítida na lembrança:
– Coloca uma batatinha crua, ali no meio, que é para puxar o excesso de sal da comida.
A saudade bateu forte. Fiquei divagando nas recordações dos seus ensinamentos de como tornar memoráveis os pratos mais simples e triviais da culinária camponesa e próprios do modo de vida em outros tempos, quando era preciso se abastecer de uma carga energética proporcional a que seria despendida com o trabalho braçal na lavoura.
Aquele bife acebolado que ela fazia com molho de tomate para comer com arroz branco e mandioca ou milho cozidos tinha um sabor só dela. O pão caseiro, então!? Fora as massas da tradição italiana… Hummm! O almoço de domingo era ao redor da sua mesa, disposta sempre da mesma forma e não precisava mudar um único ingrediente, nem o pudim de leite ou outra sobremesa que a filha trazia pronta de casa: tinha o churrasco do pai, a “maionese”, o arroz, a salada de alface com tomate ou repolho, a radite, temperada com vinagre da uva, e a cuca, como nos festejos das comunidades do interior, que aguardavam ansiosamente passar a quaresma para se espalharem em repetidas confraternizações.
Ela também me contou histórias sobre sua vida e, antes, sobre a lida da mãe lá pras bandas do Rio Grande, de onde saiu depois que o lago da barragem inundou as propriedades da região. Nesses momentos de prosa, eu mergulhava ou me sentia dentro de um romance do Érico Veríssimo. A mãe, de quem ela herdou o mal do Alzheimer, viveu perto de completar um século de existência. Quando o marido viajava de tropa para levar criação pra vender e buscar na cidade ou até na capital as mercadorias que não eram produzidas por eles, ali mesmo na roça, ela tinha de dar conta das crianças e da propriedade sozinha. À noite, muitas vezes, botava o caldeirão de polenta para esfriar na beirada da janela, pendurado por um gancho forte, e trancava todo o restante da casa. Quando ouvia uma onça se aproximar ou rondar o sítio, precisava rapidamente juntar todas suas forças para puxar o caldeirão ainda quente para dentro de novo.
Força e coragem aquela mulherada tinha de sobra! Nem podia ser diferente. Também herdou da mãe essas qualidades e outros super poderes. No seu tempo de cuidar da própria família, lembrava da saga que era sair lá da divisa do Rio Grande, cruzar o Uruguai de balsa e levar as crianças para o hospital regional mais próximo, que ficava em Concórdia, já no estado de Santa Catarina. Quando precisava ir com os dois pequenos, um de colo, inclusive, para tratamento no Regional, ia de carroça até um pedaço e o trecho dali até a barranca do Uruguai, para tomar a balsa, por sua vez, tinha de ser feito a pé. Empreendia isso com as duas crianças pequenas no braço e uma sacola carregada de tudo o que precisaria usar no dia, pois o retorno só seria possível à noitinha. Até onde a maiorzinha conseguisse caminhar, ela levava os dois, mas chegava uma hora em que tinha de achar uma árvore, deixar uma das crianças ali encostada e levar a outra mais adiante. Voltava, buscava aquela que ficou para trás e ia nesse passo e ritmo até a beira do rio.
A saudade me veio forte mesmo. Hoje, a doença do sistema nervoso corroeu suas lembranças, assim como as águas, que inundaram a comunidade em que nasceu, apagaram registros históricos e marcas das jornadas da nossa gente sobre aquelas terras. Por sorte, a vida que construiu e o mundo que conheceu possibilitaram, nas confraternizações em volta de sua mesa, que ela contasse tantas e tantas passagens heroicas como essas. Não sei dizer se os fatos se deram exatamente assim, mas é dessa forma que me lembro dos relatos e os guardo.
Com toda certeza, filhos e netos têm inúmeras narrativas para perpetuar em registros ou documentar para que outros possam mergulhar nessas raízes e com uma riqueza de detalhes que a minha memória não alcança ou sequer tomou ciência. O tempo que lhe foi permitido fazer, ela contou e recontou pra gente suas histórias e nos presenteou com a vastidão dos seus conhecimentos. Respeitar, cultuar, honrar e preservar essa memória e esse tempo dedicado a transmitir sabedoria é mais do que um compromisso, é nossa resistência diante do esquecimento e da borracha impiedosa do Alzheimer sobre a nossa identidade cultural. E resistir é sempre preciso!
Parece em Marcelino Ramos!
norberto, era Mariano Moro. Pertinho!
nos faz viajar no tempo, ver a vida simples e boa.
Um retrato de gerações como se tivesse ouvindo a história de algo familiar , próximo.
Rica em detalhes como máquina do tempo nos transportando ao mundo que foi um privilégio, ainda com suas dificuldades mas tinha o ar da felicidade, respeito e amor. Causa justa pela família
Ejak, Você sempre mergulha na essência das narrativas. É bem isso… Onde há gente, existe a possibilidade de viver esse privilégio.
Solidário à voce. Minha mãe tamb;em passa por esse processo. Dias que se alternam – normalidade e lembrancas somente de um passado muito distante. A borracha do Alzheimer é impiedosa. Resistir sempre. Relato para ler e guardar. Obrigado
Solidária a você também, swissblue. Essa doença exige das pessoas que amam e que cuidam da paciente toda força, energia e sensibilidade, as condições que nos definem como humanos. No meio de uma pandemia porta afora, é mais dramático ainda. Só cuidar e amar, mais nada, aliás, devolvendo o que elas fizeram por nós, incondicionalmente, diante das nossas limitações e fragilidades. O legado delas está nas pessoas que nos tornamos. E não tem gesto mais grandioso que esse, né!? Por isso me bateu a saudade quando cortei o pedaço da batata do jeito que ela dizia que era pra fazer. 💖
Obrigado Thea Tavares.
Tambem me encheu de saudades da minha infancia, das boas lembranças das historias da minha mae. Vamos resistindo, firmes. Agora “amigos” de novo. Primeira vez que lí uma postagem sua trazia referencia sobre Belchior, que para mim foi o maior letrista do país – aprendi a gostar da sua musica, virei fã. Depois prometi nao ler mais vc quando descubri sua viez politica. Li vc meio escondido e pela metade. Hoje seu post foi especial e resolvi assumir a leitura e ser novamente seu leitor .
Sorte para nós.