10:57Não sei porque sei

por RO

Até hoje não sei quem ele era, nem de onde veio. Tinha registro de paulista na certidão de casamento. Falava duma coleção de Direito em encadernação de luxo e papel de primeira (pra que?); sobre uma fazenda em Presidente Prudente, onde plantava hortelã, combustível de guerra. E depois mudava pro Rio de Janeiro e ainda menino engraxava sapatos em estações de trem, pra ganhar uns trocados, por obediência a um pai calabrês severo, cruel , e sua mulher calada. Engraçado é que só consigo lembrar do nome dela – Miquelina – e do susto que levei quando soube que tivera 22 filhos, boa parideira. Quantos “vingaram”?, quantos “anjinhos”, onde estão? Quem são?

Conquistou minha mãe com termos bem cortados e bons perfumes. Nunca soube que tive profissão definida. Foi cozinheiro dos desbravadores que botaram abaixo a mata do norte do Paraná. Pegou maleita e nunca perdoou o tratamento recebido das freiras da Santa Casa, porque não podia pagar. Só o vi trabalhar em bares, e tenho certeza que fez o melhor sorvete de limão que já provei. Massa cremosa, branquinha de tanto ser batida, torcida, mexida com aquela pazona, rodada. Assentada na casquinha, minha alma de criança lambia tudo aquilo, refrescada.

Quando cardíaco, diabético e abstêmio, poucos anos antes de morrer, passamos a chamá-lo pelo nome e queria avivar suas memórias, suas lembrança…Pergunta e pergunta, mas acho que tudo tinha virado pororoca, não se salvou nada. Nem a dor dele, que virou pó de vidro e cortou a língua, em mim fez ferida. Posso mostrar a escondida e nunca comentada casquinha: uma cicatriz debaixo do seio esquerdo. Que dói bem de leve, é verdade, sabe-se lá quando, por ele ter sido ausência e tão pouca saudade. Pode ter sido assim ontem à noite.

Sempre devotei à minha mãe todo carinho e todo amor…foi ela quem se matou de trabalhar para que os estudassem…Tinha 14 anos quando meu pai me queria trabalhando na roça (deixando de estudar) ou ser babá ou fazer faxina. Os livros me deram coragem: avisei à família que ia me mudar da cidadezinha para estudar, aos 16 anos. Fui embora sozinha pra outra cidade, maior. Quatro meses depois minha família também veio.

Até aquela idade já tinha tirado muita água de poço, cortado lenha com machado e passado muita roupa com ferro a brasa. Meus olhos até hoje têm um certo embaçado das cinzas assopradas para avivar o carvão.

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