6:27A hora do pesadelo

por Thea Tavares

O pesadelo nos assombra de olhos bem abertos. Como nos apavoram também a apatia e a capacidade que descobrimos possuir de banalizar os horrores estampados na contabilidade do noticiário, no cotidiano da peste desgovernada que assola nosso tempo, e de invisibilizar as velhas, conhecidas e mal tratadas mazelas do querido antigo normal, que continuam acontecendo por debaixo dos tapetes em que as jogamos, à espera da Covid-19 passar.

A analogia que se faz coloquialmente com o método do Jack, o estripador, ou seja, tratar das situações “por partes”, nunca foi uma metáfora tão perversa e tão expressiva dos nossos dias. O foco necessário na ameaça de um vírus invisível, que se aloja no organismo e vai minando, corroendo as estruturas da matéria por dentro e desgastando as peças da engrenagem que abalam o funcionamento do mecanismo como um todo, cerra nossos olhos e neutraliza a nossa atenção para perigos e atrocidades que já eram antes reconhecidos ou desesperadores.

Longe de querer tirar seu sono, até porque isso também parece ser uma constante e inerente derivação desse período, mas tão necessário quanto enxergar com precisão o momento presente é intervir diretamente na sua transformação. Desesperar é fácil e é humano, mas as faculdades humanas se propõem justamente à superação dos empecilhos e ao desatar dos mais apertados nós. A suspeita que nos desassossega é a de que vamos emergir desse pesadelo acordado para o confronto com a realidade paralela de um mundo mais violento, abusador, mais potencialmente apático, insensível e ainda mais devastado (além de desmatado).

A Pollyanna precisou se acomodar, por um momento, reflexiva no seu canto bucólico, e se postou fechada para balanço, a fim de reunir todas as suas forças e todo seu potencial esperançoso para reagir ao que vem pela frente. Nesse sono de Epimeteu, alimentado pelas vinganças que se originam em um gigantesco orgulho divinal ferido ou pelo descarrilamento das ganâncias que exploram à exaustão nossos recursos naturais, adota-se a abstração coletiva e se confere uma irrelevância generalizada ao que nos cerca e que está nitidamente dado, sob a guarda do nosso instinto de preservação individual.

A sensação é de nos encontrarmos no epicentro de um abalo com a magnitude capaz de alterar o eixo de rotação da Terra. Todas as coisas sobre a superfície estão suspensas e, ao cair, pela força da atração gravitacional, montarão um cenário de carga arrumada por esse tremendo sacolejo, num conjunto perfeitamente desalinhado dos diferentes objetos. E a barbárie maior que vislumbramos na poeira desse pesadelo é a nossa própria imagem, paralisada, gélida, sem emoções, desprotegida e de braços cruzados, no espelho das desimportâncias.

 

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