por Thea Tavares
Dona Neide sentiu falta do Carnaval do Rio. A bem da verdade, nunca pisou na passarela do samba e nem é torcedora fervorosa de nenhuma escola de comunidade. A referência dela é a lembrança do irmão, que também não gostava da festa pagã e não tinha nem uma gota sequer de sangue no pé polaco, mas virava as madrugadas, acompanhando pela TV os desfiles na Marquês de Sapucaí. A cunhada achava que era só por causa dos trajes (ou da economia deles) nos carros e alegorias em geral, mas Dona Neide explica que o irmão gostava mesmo das histórias e curiosidades contadas pelos enredos das agremiações. Uma aula que não se lia nos livros didáticos!
Com todas as críticas envolvendo essa indústria do entretenimento, inclusive a “pasteurização” e “gourmetização” dos enredos, depois que se tornaram peças de marketing de governos ou, indo mais a fundo, nos bastidores do poder e da exploração das violências por trás do festerê em si, não tem como não concordar com o saudoso irmão da senhora curitibana de que a folia tem lá seus encantos e que se aprende muito sobre as nossas raízes, nossa história e formação cultural com a produção carnavalesca. Mesmo quem se orgulhava em não gostar, de alguma forma aproveitava aquela semana preguiçosa e de atrevimentos que os festejos propiciavam.
O que eu sinto mais falta, dos blocos de rua ao desfile naquele palco iluminado, é do carnaval de contestação, subversivo, crítico e polêmico, que denuncia e satiriza as perversidades no cotidiano do povo pobre. Até por isso que, como bem canta e desenha Chico Buarque, quando descreve em “Vai Passar” esse estandarte do sanatório geral, o feriado que simbolicamente adia em nosso calendário o início oficial do ano de labutas também carrega um certo aspecto vingativo de catarse popular: “E um dia, afinal, tinham direito a uma alegria fugaz, uma ofegante epidemia, que se chamava Carnaval”.
Nesse quesito, o Brasil atual seria um cenário profícuo para a criatividade dos carnavalescos. A julgar pelo sucesso das diversas marchinhas da vacina no ambiente das lives e vídeos postados nas redes sociais e ainda pela profusão de bizarrices, absurdos, barbaridades e canalhices dos poderosos de plantão, o Carnaval de 2021 tinha tudo para ser “A” celebração da expressão e da inventividade do nosso povo, que é profissional em ironizar a própria desgraça. Que falta que faz! Seria uma festa gastronômica também, sem dúvida, com alegorias de laranjais, hamburgueres, de leite condensado, de churrascos e de cervejas. Fora as rachadinhas, os jacarés e marrecos inspirados nas bufas, bazófias e fanfarrices com o dinheiro público. Blocos e escolas não perdoariam. Capaz que não!
Sinto falta daquela alusão a uma alegria coletiva, de construção comunitária. Se, no início da pandemia, aliviamos a carga do pânico estabelecido com o conforto trazido pelos shows e transmissões ao vivo de apresentações artísticas remotas, imagina quando pudermos de novo abraçar as pessoas ao encontrá-las, pular o Carnaval nas ruas e nos salões, com a criançada gastando energia nos bailes infantis?! Fora a estrutura envolvida e a receita gerada nessa produção cultural e artística legitimamente brasileira, que é atração turística e fonte de renda para muita gente. Penso rapidamente nas costureiras, músicos, cenógrafos, coreógrafos, passistas, foliões… Isso se focarmos atenção apenas nos desfiles do Rio de Janeiro, sem contar o Carnaval de Olinda, a festa do frevo no Recife, do Axé na Bahia, de Bois no Amazonas e no Maranhão e até o São João, daqui a alguns meses, nos estados do Nordeste, especialmente no cinturão sertanejo mais castigado pela geografia.
Claro que não tínhamos clima nenhum para a realização de festas e de aglomerações, nem em 2020 e muito menos agora, neste iniciozinho de ano. Mas nem sei dizer com segurança se poderemos ter Carnaval de volta em 2022. Ao passo que as coisas andam ou não andam, movidas a negacionismos, ignorâncias, crimes, fake news e as irresponsabilidades em torno do menosprezo da “gripezinha”, tão cedo não veremos um retorno àquela “normalidade” que nos era familiar até 2019. E se forem mantidos os festejos sem a menor garantia de segurança ou de imunização da população (por falta de vacina para assegurar essa proteção), não haverá responsabilização que pague o valor inestimável das vidas perdidas para a pandemia. Vimos a presepada que se fez em fevereiro de 2020, quando a COVID-19 já pulava à solta no Carnaval, e isso ainda pode, inclusive, vir a ser confirmado como um vetor da disseminação acelerada do vírus por aqui.
A ausência que nos angustia hoje, sentida a seu modo pela Dona Neide com a lembrança do irmão, vem da perda de controle e do sentimento de familiaridade, bem como da sensação de impotência diante de tantas decisões condicionadas nesse ambiente sufocante. Tenho certeza de não merecer este momento, mas enquanto olharmos para o quadro – não falo nem da pandemia, mas dos negacionismos e das negligências institucionais de um necrogoverno que nos oprime sistematicamente – achando que tudo vai bem, que está tudo legal, vamos fazer coro e dar razão às profecias do também saudoso Gonzaguinha, no que assimilo como uma espécie de releitura de Brecht: “Cerveja, samba… E, amanhã, Seu Zé, se acabarem com teu Carnaval?”.