9:33A função da imprensa

A função da imprensa é ajudar os poderes da Terra a dirigirem o povo. Em países ditos socialistas, canta as glórias do socialismo. Em países ditos democráticos, as glórias do sistema […] desde que o sistema (o capitalismo) não seja contestado na base, na raiz. Os proprietários sabem que podem desafiar o sistema só até certo ponto, caso contrário seriam massacrados economicamente. Essas são as condições de trabalho. No que me toca, sempre procurei trabalhar onde me dessem liberdade. (Paulo Francis)

Brilhante e irresponsável, Paulo Francis publicou mais de 8.000 textos na Folha

Jornalista escreveu para quase todos os cadernos, mas ficou marcado pela coluna na Ilustrada

por Nelson de Sá

Em junho de 1975, Paulo Francis noticiava na Folha a estreia de Pelé em Nova York, no time do Cosmos, “uma dependência do conglomerado Warner”.

Foi “primeira página do New York Times, que chegou a saudar Pelé em editorial”. Ocupou “os três noticiários nacionais, da CBS, NBC e ABC”. O jogo “lotou o estádio, televisado para 20 países”.

Mas era “sem nenhuma importância esportiva”, só mesmo para a “implantação da marca Pelé nos EUA”, parte de uma campanha da “Pepsi-Cola, que teve a ideia de usar o jogador promovendo seus refrigerantes em escala mundial”.

Foi uma das suas primeiras colaborações. Antes do fim daquele ano, Francis seria contratado em definitivo por Cláudio Abramo, que havia retornado à chefia do jornal para uma reforma que refletisse a mudança política no país.

Era o início da abertura, a oposição tinha acabado de vencer uma eleição. “Começamos a levar gente boa, como o Paulo Francis”, escreveu Abramo em “A Regra do Jogo” (Companhia das Letras, 1989).

O correspondente ficou 15 anos na Folha e se tornou a sua face pública, com um jornalismo iconoclasta, brilhante e irresponsável. Publicou mais de 8.000 textos, em quase todos os cadernos. Pelas suas contas, a certa altura, produzia nove por semana.

Escrevia dos Estados Unidos e ficou marcado pelas colunas na Ilustrada, sob o título genérico de Diário da Corte. Na descrição dele mesmo, “se dei uma contribuição ao jornalismo brasileiro, foi a de desmistificar os EUA”.

Carioca, chegou ao jornal já com extensa carreira em redação. Mas começou, na verdade, no palco. Foi ator, chegando a ser indicado como revelação, e diretor, tendo encenado “Pedro Mico”, de Antônio Callado, com cenário de Oscar Niemeyer.

Seu nome era Franz Paulo Trannin da Matta Heilborn. Paschoal Carlos Magno, diplomata e teatrólogo, ao aceitá-lo numa turnê de sua companhia, trocou para Paulo Francis. “Nome de bailarino de teatro de revista”, lamentava Francis.

Passou do palco para o Diário Carioca, com uma extensa coluna quase diária sobre teatro. Elogiava Cacilda Becker e sobretudo Fernanda Montenegro, mas o episódio que o marcou foi um texto ofensivo à atriz Tônia Carrero, com insinuação de promiscuidade.

Em episódio célebre, o ator Paulo Autran e o diretor italiano Adolfo Celi, então marido de Tônia, foram tirar satisfação. O primeiro deu uma cusparada, o segundo o agrediu com socos.

Então à esquerda e nacionalista, Francis passou a abordar política cada vez mais e acabou sendo chamado para o trabalhista Última Hora. Por dois anos, até o golpe de 1964, publicou a coluna diária “Paulo Francis informa e comenta” no canto direito da página 3, de alto a baixo.

Depois foi editor de cultura do Correio da Manhã, então o principal do país, e escreveu no semanário O Pasquim ao lado dos amigos Millôr Fernandes e Henfil. Preso quatro vezes pela ditadura, mudou-se para Nova York.

Já tinha vivido lá com o pai, executivo da petroleira Esso, mas na época só pensava em teatro. Na Folha, de início, sua área de preferência foi política internacional, mas logo estava por todo lado, da cultura à economia, inclusive atrás de furos.

O que mais marcou, pelo menos nos primeiros anos, foi um relatório do Banco Mundial que ele obteve no final dos anos 1980, noticiou e enviou para o jornal, resultando num caderno especial que mobilizou, entre outros, o jovem economista Eduardo Suplicy.

Foi então que veio a público, a partir de uma nota de rodapé no relatório, que a instituição havia adotado 22,5% como inflação para 1973 “em vez do dado oficial de 12,6%”, manipulado pela ditadura para conter o reajuste de salários e preços.

Passado um mês, Lula, então no sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo, abriu campanha com base no relatório. Mais alguns meses e, ao receber o contracheque sem a reposição, os trabalhadores da Scania desligaram as máquinas, disparando o movimento histórico.

“Aos 50 anos, politicamente, continuo, de coração, na esquerda”, escreveu Francis nas breves memórias que publicou em 1980. Mas já estava de mudança para a direita, afirmando no jornal, por exemplo, sua “suspeita crescente de qualquer Estado”.

A virada ganhou forma mais definida em 1985, num texto sobre o economista Roberto Campos, que tinha sido seu alvo por dez anos —como quase sempre, com insinuações de promiscuidade. Afirmou então que ele “melhora horrores, em pessoa”:

“Escrevi coisas brutais sobre Campos. São erradas. Retiro-as. Cheguei à conclusão de que o capitalismo num país rico é opcional. Num país pobre, a suposta saída que se propõe no Brasil, de o Estado assumir e administrar, leva à perpetuação do atraso.”

Partiu daí para ataques preconceituosos à prefeita Luiza Erundina e depois apoio aberto à eleição de Fernando Collor. Descreveu-o como “alto, bonito e branco, branco ocidental. É outra imagem do Brasil, com que fui criado, francamente”.

Dois meses após assumir, em 1990, Collor ordenou a invasão do jornal pela Polícia Federal. Francis de início criticou, mas logo voltou aos elogios ao presidente —e a provocações racistas, por exemplo, sobre um garçom “crioulo” que o teria levado a pensar em “chibata”.

Deixou a Folha no final daquele ano, passando a escrever nos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo, até sua morte, em 1997.

LEIA TRECHOS DE COLUNAS DE PAULO FRANCIS

A função da imprensa é ajudar os poderes da Terra a dirigirem o povo. Em países ditos socialistas, canta as glórias do socialismo. Em países ditos democráticos, as glórias do sistema […] desde que o sistema (o capitalismo) não seja contestado na base, na raiz. Os proprietários sabem que podem desafiar o sistema só até certo ponto, caso contrário seriam massacrados economicamente. Essas são as condições de trabalho. No que me toca, sempre procurei trabalhar onde me dessem liberdade

 

Coluna de 1980

Vejo que o pivete José Guilherme Merquior está avançando corajosamente de cara contra meu punho, se aproveitando da oportunidade de comentar o livro de outro vagabundo, Pucci ou Gucci [o professor Davi Arrigucci Jr., da Unicamp], para me xingar. É justo. Afinal, […] citei Merquior como o pior caráter da geração literária que agora completa 40 anos. Se vendeu a primeira vez por um chá. […] Confesso que sem ter sequer lido o que o pivete escreveu pensei em dedicar-lhe um artigo, contando o seu comportamento canalha na editora Civilização Brasileira, quando, nos idos de 1964, tendo um livro em provas […], não ousava entrar na editora para examiná-las ou sequer recolhê-las, até que recebeu um ultimato da chefe de produção e veio, gordinho, rechonchudinho, rosado, a autêntica “menina” que esperamos encontrar no Itamaraty (e que é a exceção), o mau-caráter ferindo as narinas dos funcionários da editora que riam do pulha nos corredores

 

Coluna de 1980

Almocei com Carlos Castello Branco. […] Nossa conversa, como a de todos os jornalistas que se prezam, é impublicável. Notícia é o que não sai no jornal

 

Coluna de 1983

Não é que o nosso ombudsman saiu com um artigo contra mim? […] Era ardiloso, hum, claro. Disfarçava mencionando outros desafetos meus, como uns pitorescos negros que não cantam ou dançam e que são caçadores da minha cabeça (talvez devessem ser mandados para a instituição Smithsonian, como raridades), mas o objetivo era salvar a cara de Lula. Caio Túlio Costa é um quadro do PT e estava cumprindo o que se chamava no velho PC de “tarefa”, não servia a este jornal, mas ao PT. O artigo era extremamente presunçoso. Caio Túlio se propunha, do alto de sua superioridade, explicar aos leitores pentelhos do jornal quem era eu, com as minhas “excentricidades”, e que eu não devia ser levado a sério como jornalista. O maior insulto que se pode fazer a um jornalista. A princípio pensei em não responder. Afinal, quem é Caio Túlio? Desponta para o anonimato. Só é conhecido de um círculo restrito de redações de São Paulo; no Rio não convém arriscar uma pergunta sobre sua identidade. É ignorada. O artigo dele não contestava um único fato enunciado por mim sobre a calamidade-Lula. Não, Lula é indefensável. Não, o objetivo, como notou Vargas Llosa, era minha “satanização”. Não se podendo discutir a mensagem, o negócio é desmoralizar o mensageiro. Havia também o fator pessoal. Eu sou bom. Caio Túlio é ruim. Eu sou famoso. Ele é obscuro. Ganho muito mais do que ele e, por ter ocupado um cargo de chefia neste jornal, Caio Túlio sabe. Eu estou no ápice da minha carreira. Ele é apenas um bedel de jornal

 

Coluna de 1990, em resposta ao então ombudsman da Folha, Caio Túlio Costa

*Publicado na Folha de S.Paulo

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