por Marcos André Vinhas Catão, no jornal O Globo
Músicos mostram as escolhas que temos que fazer como seres e nações
Coincidentemente, há poucos dias saíram do forno álbuns de dois magnânimos da música. Enquanto do outro lado do Atlântico Paul McCartney soltava seu “McCartney III”, Fagner lançava por estas bandas o álbum “Serenata”. Mas o que teria essa confluência musical com a América Latina do atual momento? A ver. Em duas canções que perfazem a idiossincrasia e a ambiguidade, que vão desde os nossos indivíduos até o plano coletivo, os dois músicos mostram as escolhas que temos que fazer enquanto seres e nações. A combinação da criatividade com a temperança para se encontrar o equilíbrio sadio e produtivo.
McCartney dizia em “Hello, Goodbye”: “Ei você, cante alto!”, diz uma pessoa. Mas o outro responde: “Mas eu quero cantar suave”, no que talvez possa ser a melhor tradução livre da frase respectiva da canção. O grupo inglês acabava de perder Brian Epstein, o empresário que os erigiu à estatura de maior fenômeno musical de todos os tempos. Estavam no auge de sua criatividade, mas necessitavam subir alguns degraus e alcançar o equilíbrio entre o ímpeto juvenil e a maturidade musical para seguir adiante sem o empresário.
Na faixa-título do álbum “Traduzir-se”, Fagner canta: “Uma parte de mim pesa e pondera, e outra parte delira”. Pois bem. “Traduzir-se”, publicado em 1981, tornou-se um disco popular na Península Ibérica e na América Latina. Mas que ficou pouco conhecido na América lusitana. Trazia nada mais nada menos que gênios como Paco de Lucia, um dos maiores “guitarristas” da música contemporânea; Mercedes Sosa, talvez a maior voz latino-americana; e Camarón de la Isla, reconhecidamente o mais prestigiado cantor flamenco de todos os tempos, em um duelo de vozes encantadoramente rasgadas em “La leyenda del tiempo”.
O que aconteceu depois? Os Beatles encontraram George Martin. Foi o maior produtor musical da história, e que os fez lançar dois dos maiores álbuns da banda: “Sergeant Peppers” e “Abbey Road”.Madri, voltou ao Brasil e tornou-se um dos muito poucos músicos cantores realmente populares que penetravam no erudito linguístico. Incorporando outras culturas, como a do Oriente Médio.
Assim como “McCartney III”, “Serenatas” é uma preciosidade que resgata Nelson Gonçalves. Suavidade em tempos horrorosos de Covid. Lamentavelmente, a América Latina não seguiu a evolução dos grandes dois músicos.
Perdemos o patriarcado hispânico; os quisemos transformar em louvação latino-xenófoba (Bolívar e Martin) e acabamos nos tornando em jovens que não amadurecem entre os selos de esquerda/direita e que se prestam à adulação das grandes potências. Filhos que não querem crescer e que precisam de duendes messiânicos que se esquivam da salutar — mas dolorosa — democracia adulta. Que venham “McCartney IV” e “Traduzir-se II”. E que “se vaya” o populismo, vírus que Hannah Arendt, a maior pensadora do século XX, já prenunciava como o maior mal deste século.