por Sérgio Rodrigues
No dia em que Clarice Lispector e José Carlos Oliveira quase saíram no tapa na mesa do Antônio’s, a grande escritora entrevistava o cronista para a “Fatos & Fotos: Gente”, revista que, como fizera com a “Manchete” de 1968 a 1969, ela alimentou de entrevistas com artistas, escritores e esportistas brasileiros de dezembro de 1976 a outubro de 1977, para defender uns trocados. No entanto, pouca gente no lendário restaurante boêmio do Leblon deve ter percebido o que acontecia naquela mesa: perguntas e respostas eram disparadas de um lado a outro em atarefado silêncio, rabiscadas numa folha de papel. Clarice estava gripada. Carlinhos ia jantar. Com sua agressividade cultivada e famosa, o cronista do “Jornal do Brasil” enchia suas respostas de palavrões, magoando Clarice, que anotaria mais tarde: “Acho que Carlinhos continuava a me desafiar escrevendo na folha de papel expressões que ele próprio não usa nas suas crônicas. Mas a mim tanto se me faz”. A certa altura, depois de afirmar que “fazer sucesso é chegar ao mais baixo do fracasso, é sem querer cortar a vida em dois e ver o sangue correr”, Clarice emenda, conciliadora: “Nós dois, Carlinhos, nos gostamos um do outro, mas falamos palavras diversas”. É quando tudo azeda de vez:
CARLINHOS: Falamos linguagem diversa, é verdade. Eu prefiro ser feliz na rua a “cortar a vida em dois”.
CLARICE: E eu prefiro tudo; entendeu? Não quero perder nada, não quero sequer a escolha. Mas me fale de seus planos, José Carlos.
CARLINHOS: Você prefere inclusive ser uma grande escritora. Mas eu renunciei há muito tempo a essa vaidade. Quero comer, beber, fazer amor e morrer. Não me considero responsável pela literatura.
CLARICE: Nem eu, meu caro. E estou vendo a hora em que começaremos, dentro de toda a amizade, a brigar. Também posso lhe dizer que se viver é beber no Antônio’s, isso é pouco para mim. Quero mais porque minha sede é maior que a sua.
CARLINHOS: Evidentemente.
CLARICE: Eu gosto muito de você, Carlinhos.
CARLINHOS: Mas aqui não estávamos falando de amizade, e sim mostrando que uma escritora como Clarice Lispector, em vez de comer e beber comigo, tem que pensar em entrevistas para poder sobreviver. É por isso que eu digo: devemos jogar uma bomba atômica na Academia Brasileira de Letras.
Gosto especialmente de “se viver é beber no Antônio’s, isso é pouco para mim”. Sabia bater para machucar, a Clarice. A cena traduz com uma nitidez de cortar o coração a atmosfera de um tempo, um ambiente, um clima da cultura brasileira que hoje parecem pré-históricos. Profundamente datada na licença que a ditadura dava aos “contestadores” para pavonear suas arestas e demais inconveniências no atacado, aquela época pré-marqueteira era também de um despojamento e de uma singeleza que permitiam a Clarice Lispector, já um monstro da literatura, se expor como repórter de uma precursora da “Caras” e conduzir as entrevistas mais anarquizantes de qualquer figurino jornalístico que já encontrei – aí incluídos os famosos bate-papos do “Pasquim”. Tudo isso torna imperdível o livro “Clarice Lispector – Entrevistas” (Rocco, 232 páginas, R$ 29), coletânea de 42 entrevistas, 19 delas inéditas em livro – 23 já tinham sido publicadas no volume “De corpo inteiro” (Rocco, 1999).
*Publicado no blog Todo Prosa em 24/05/2007