por João Pereira Coutinho
Haveria uma comissão que, incapaz de entender metáfora ou subversão, atiçaria a fogueira da unanimidade burra
Nunca invejei tanto um autor como Nelson Rodrigues. Agora, nos 40 anos da morte, posso confessar.
Conheci a prosa de Nelson por via paterna e corri para a máquina de escrever. Meus textos eram polvilhados por confissões violentas, frases que se corrigiam a si próprias (“não, não era isso que eu queria escrever” etc.) e algumas imagens que eram plágios descarados (sol derretendo catedrais; tempestades de quinto ato do “Rigoletto”).
O mimetismo era tão intenso, e tão patético, que até relatava as minhas relações com uma úlcera imaginária, que eu tratava a pires de leite.
Assim era a adolescência. Só na idade adulta percebemos como Nelson é inimitável. No estilo, sim, mas sobretudo nas obsessões. Se Deus vomita os mornos, Nelson Rodrigues era o antimorno por excelência —o mais russo dos brasileiros, o mais brasileiro dos russos.
Nos últimos dias, só para celebrar a efeméride, regressei aos livros dele. Duas conclusões fulminantes: Nelson não envelheceu uma ruga; Nelson seria impublicável na imprensa de hoje. A primeira conclusão está diretamente relacionada com a segunda.
Nelson não envelheceu nos textos que importam: aqueles que lidam com a covardia da nossa modernidade. E de onde vem essa covardia?
Da emergência implacável do idiota, que o autor relata em tom épico, digno de uma ópera. O idiota, antigamente, sabia que era idiota e não pretendia ser gênio. Havia ali uma humildade prudente.
Mas eis que um deles, igual a um macaco de Kubrick, resolveu subir a um caixote para falar as suas imbecilidades. Como um flautista encantado, ele convocou os restantes idiotas para que saíssem da sombra e se reunissem à luz do dia.
Foi então que aconteceu a segunda epifania: os idiotas descobriram que eram milhares, milhões. A maioria. O mundo poderia ser moldado segundo as suas vontades e opiniões.
Isso, que já é dramático, se tornou trágico com a covardia dos melhores. “O medo começa nos lares, e dos lares passa para a igreja, e da igreja passa para as universidades, e destas para as redações, e daí para o romance, para o teatro, para o cinema”, escreve o autor no espantoso texto “O Ex-covarde”. E em que consiste a ética do idiota?
Não é possível resumir aqui as mil manifestações de idiotia que Nelson nos legou como tesouro e aviso. Mas duas delas são tão contemporâneas que a minha úlcera, apesar de imaginária, reage de imediato: as falsas ideias e as falsas virtudes.
Sobre as primeiras, Nelson Rodrigues é Eça de Queirós “vintage”. Se existe algo que o meu compatriota soube denunciar foi a forma subdesenvolvida como Portugal importava “leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias”. O problema, acrescentava Eça, é que a civilização “não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas”.
Se assim era no século 19, o mimetismo atingiu proporções desastrosas no século 20 —e no 21. “O sujeito morre e mata por ideias, sentimentos, ódios que lhe foram injetados”, escrevia Nelson.
E os jovens, sobretudo eles, sempre foram terreno fértil para essas sementes de histeria e ódio que os canalhas ideológicos lançam à distância. Os adultos, esses, seguem os jovens porque os temem.
A par dessa falsificação, existe outra: a repugnante sinalização da virtude que tomou conta do espaço público. Estamos afogados em bons sentimentos, como se houvesse um concurso só para ver quem é mais piedoso, ou seja, mentiroso.
Essa artificialidade obscena, quase pornográfica, está a anos-luz das confissões que interessam: aquelas onde emergimos sem máscaras ou disfarces, a uma luz terrivelmente cruel.
Só Nelson Rodrigues, na noite em que soube da morte de Guimarães Rosa, seria capaz de confessar o seu alívio, a sua satisfação e até a sua euforia por ter sido o outro a morrer, e não ele.
Hoje, um texto desses seria trucidado pelas redes, pelos leitores ignorantes e até por editores covardes.
Sem falar de outras crônicas, onde a relação entre os sexos não cumpre os critérios da “igualdade” e algumas críticas políticas são vistas como “discurso de ódio”. Haveria logo uma comissão de literalistas que, incapazes de entender a natureza metafórica ou subversiva da grande literatura, trataria logo de atiçar a fogueira da unanimidade burra.
Nelson Rodrigues sobreviveu a essas patrulhas. Será que vai sobreviver às nossas? Mistério. Mas eu, pelo sim, pelo não, já comprei um cofre para os livros que recebi como herança paterna.
*Publicado na Folha de S.Paulo
Não lembrava dessa sua crônica. Por acaso, relendo o Nelson, vim ter coincidentemente com ela. Perfeita.