por Mário Montanha Teixeira Filho
Chove, algo raro nos dias que correm. O mundo escancara a normalidade que meus olhos acompanham pela vidraça umedecida. No quarto, a existência que resta, o tempo, o anonimato, o cansaço. Abro alguns livros, sem ordem, palavras cuidadosamente escolhidas, ou não, cérebros condutores de vidas antigas, que deixaram de ser.
O movimento dos carros, as conversas animadas, os bares cheios de gente, tudo o que sempre pregou o monstro de modos cruéis, palavras estranhas e filhos grotescos, o monstro a saborear o seu triunfo. Os muitos milhares que formam a legião dos mortos seguem esquecidos. Não há mais sentimento, os dias frios secaram as lágrimas.
Procuro Camus, Albert, que leio e releio, na busca inútil de compreender o que se passa. Sobre o argelino, um estudo desconhecido para mim, de autor estranho, Ronald Aronson, cujas letras me encantaram. Diz o biógrafo, em “Camus e Sartre: o polêmico fim de uma amizade no pós-guerra” (Nova Fronteira, 2007): “O livro ‘A peste’ […] foi o manual de engajamento de Camus. Ele transmite a determinação anti-heroica de fazer o que deve ser feito diante de uma ameaça total, sem, como diz o narrador, dar ‘demasiada importância às belas ações’. Aqueles que participaram das ‘equipes sanitárias’ do romance o fizeram porque ‘sabiam que era a única coisa a fazer, e não decidir fazê-lo é que teria sido incrível’. A situação o exigia. Isso era tudo”. E o destaque da cena poética: “Há uma simplicidade […] que é inspiradora e, ocasionalmente, até mesmo inebriante, como quando Rieux e Tarrou nadam juntos. Essa passagem maravilhosa, descrevendo não a luta, mas o momento do descanso, é um dos pontos altos da obra de Camus”.
Eis a síntese da tragédia retratada no livro: “Porque é efetivamente necessário falar dos enterros, e o narrador pede desculpas. Sente naturalmente a crítica que lhe poderia ser feita a respeito, mas a única justificativa é que houve enterros durante toda essa época e que, de certo modo, o obrigaram, como obrigaram a todos os nossos concidadãos, a preocupar-se com enterros. […] Era a evidência. Na verdade, era sempre possível esforçar-se por não a ver, fechar os olhos e recusá-la, mas a evidência tem uma força terrível que acaba sempre vencendo. Qual o meio, por exemplo, de recusar os enterros no dia em que nossos entes queridos precisam ser enterrados? Pois bem, o que caracterizava no início nossas cerimônias era a rapidez! Todas as formalidades haviam sido simplificadas, e, de uma maneira geral, a pompa fúnebre fora suprimida. Os doentes morriam longe da família, e tinham sido proibidos os velórios rituais, de modo que os que morriam à tardinha passavam a noite sós, e os que morriam de dia eram enterrados sem demora” (Abril Cultural, 1984).
Pobre Camus. Talvez ele não pudesse imaginar o estado puro do absurdo que abraçou as gerações seguintes ao seu desaparecimento numa curva de estrada. O que viria depois dele? A indiferença, o individualismo exacerbado, o vazio existencial.
Volto à minha solidão. Meu quarto continua em desordem. Já não chove mais, o sol forte retornou. O mundo, com sua normalidade, aglomerado de vidas pequenas, não quer parar.