por Maria Hermínia Tavares*
Bolsonaro deslocou lastro eleitoral do PT para pequenas localidades do Norte e Nordeste
O bolsonarismo é, sobretudo, “um fenômeno urbano”, sustenta o cientista político Jairo Nicolau no livro “O Brasil dobrou à direita”, lançado nesta semana.
Nele, o professor da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro procura não explicar a vitória do ex-capitão, mas fazer um retrato de corpo inteiro dos que o elegeram, iluminando cada uma de suas características: renda, gênero, cidade e região de moradia, educação, religião, simpatias e antipatias políticas.
Primoroso, o estudo tem o mérito de pulverizar qualquer explicação simplista para a catástrofe política de 2018. Os antipetistas declarados votaram, como se esperava, no candidato de extrema direita. Mas representaram apenas 1/3 do eleitorado. Metade dos votantes, sem posições fortes em relação ao partido de Lula, dividiram-se por igual entre Bolsonaro e Haddad. Este perdeu em todas as faixas de idade, mesmo entre os mais jovens —outrora uma base importante do PT. Se é fato que 70% dos evangélicos sufragaram Bolsonaro, também é fato que ele predominou entre católicos e seguidores de outras religiões.
O mais revelador foi sem dúvida o seu êxito em quase todas as grandes cidades, superando a proporção de votos obtidos pelos antipetistas nas disputas presidenciais anteriores. A vitória de Bolsonaro, um resultado contingente e possivelmente evitável —como são todos os triunfos eleitorais—, transformou de muitas maneiras o panorama político brasileiro.
Talvez a mudança mais importante para o que virá pela frente tenha sido o deslocamento do lastro social do PT para as pequenas cidades do Nordeste e do Norte, onde vivem os eleitores de menor escolaridade e com pouco acesso aos meios contemporâneos de comunicação. Embora tenha vencido em seis capitais, perdeu na maioria das cidades grandes, uma posição no mínimo incômoda para um partido reformador.
É muito cedo para tirar conclusões sobre a extensão e a profundidade do vínculo que une os eleitores àquele que conduziram ao Palácio do Planalto. Muito cedo igualmente para falar em “bolsonarismo” como fenômeno político real e duradouro, ou em Bolsonaro como líder popular.
Mas o desafio para as forças comprometidas com a reforma social e a vida civilizada não é pequeno.
Reaver as raízes perdidas nas grandes cidades vai demandar mais do que um discurso sobre os feitos do passado. Talvez exija dar respostas inovadoras para o caos urbano, a insegurança, a violência cotidiana, as desigualdades de trato no dia a dia, o acesso desigual a recursos digitais, a imensa sensação de injustiça e revolta contra a corrupção que degrada a atividade política.
*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap. Escreve às quintas-feiras.
Publicado na Folha de S.Paulo