7:20As vozes do bueiro

por Vera Iaconelli*

Acusar a vítima é uma das marcas do ato perverso

As mesmas redes virtuais que criam a possibilidade, até então inimaginável, de ouvirmos sujeitos excluídos por critérios de cor, raça, gênero e posição social dá lugar também ao assombro com falas que emergem dos bueiros psíquicos. Assustadoras, mas não inéditas, questionam publicamente se crianças abusadas seriam vítimas ou se se manteriam caladas por prazer ou interesse financeiro. Esses discursos repulsivos precisam ser reconhecidos porque têm efeitos sociais e promovem o pior.

A humanidade nunca foi grande coisa mesmo e o quanto antes pudermos admiti-lo diante do espelho, menos mal causaremos uns aos outros.

A relação entre a criança e o abusador é complexa demais para a (in)sensibilidade de alguns e carece ser continuamente explicada.

Crianças dependem da boa vontade de estranhos e contam com a sorte de que esses estranhos —pais, mães, responsáveis— as assumam e venham a amá-las a ponto de responderem suficientemente bem às necessidades delas. Crianças conhecem o mundo a partir da linguagem oferecida pelo adulto. Se bato e digo que é por amor, então, até que se prove o contrário, quem ama bate, e amor é algo que se demonstra batendo e/ou apanhando.

Das diversas mães que emergem do universo ficcional de Elena Ferrante (pseudônimo da autora), temos o exemplo da que vocifera contra os estudos da filha, ao mesmo tempo que age nos momentos decisivos para que ela siga estudando. A mensagem velada —siga fazendo o que eu nunca pude fazer, mesmo que isso me cause terrível inveja— se sobrepõe aos gritos de reprovação e às surras.

No sentido contrário, falas de proteção, de cuidado ou de pudor dos adultos responsáveis podem vir acompanhadas de negligência, descuido e obscenidade, transmitindo à criança que o desejo dos responsáveis aponta para direção oposta ao dito.

A necessidade de ser querida por alguém —necessidade vital da criança— fará com que a fala do abusador seja entendida como um gesto de interesse e amor por ela, mesmo vivendo uma experiência penosa.

O pedófilo ou pedófila, por sua vez, vive algo bem diferente. Vítima ele mesmo de abusos e violências nunca elaborados, busca com a criança inverter o jogo. Ocupando agora o lugar de poder, é incapaz de reconhecer o que se passa com o outro, assim como não foi capaz de entrar em contato com sua própria experiência de ter sido abusado.

Seu prazer consiste especificamente em ludibriar a vítima, usar sua força de sedução, seu saber sobre o sexo e sua violência contra um alvo indefeso, que não tem condição de entender claramente o que está em jogo na situação. O pedófilo goza da vulnerabilidade psíquica da vítima, sua ingenuidade e ignorância, alegando para si mesmo que a criança consente com o que ele faz, pois ele desmente a relutância e o desespero da vítima.1

Sem balizas, sem experiências com as quais comparar o que está sentindo física e afetivamente, persuadida a guardar segredo —sob ameaças e seduções—, a criança segue aprendendo com o adulto como as coisas são.

A situação de abuso pode ser episódica —um deslize da vigilância dos responsáveis— ou repetida ao longo dos anos, acobertada pela conivência desses mesmos adultos, eles também abusadores passivos.

As vozes que tivemos a infelicidade de ouvir compactuam perversamente com essa visão ao acusar a vítima de ser cúmplice do abusador. Não devemos calá-las, mas escancarar sua perversidade. O atual desmonte do Disque 100 —canal de denúncia e combate ao abuso infantil— pela administração Damares nos alerta para isso.Vera Iaconelli

*Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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