15:44Nossa Senhora, a pandemia e os torcedores de papel

por Mário Montanha Teixeira Filho

A pandemia nos oferece cenas inimagináveis, muitas delas asquerosas, protagonizadas pelas ditas autoridades que comandam o País. Não me concentrarei nas asquerosas, que são muitas, sucessivas, reveladoras da falência humana que nos cerca, para me restringir a duas situações estranhas que só fiz perceber alguns dias atrás.

A primeira delas me veio ao deparar, no noticiário da minha cidade, com um vídeo em que o alcaide aparece numa missa, dengoso e comovido, toma a palavra do padre pregador e agradece à Nossa Senhora da Luz pela proteção ofertada aos munícipes durante a proliferação do vírus. “O pior já passou”, introduz, para depois anunciar a retomada da “normalidade” do comércio e do lazer. Por instantes, pensei estar sonhando – ou ter sonhado durante o longo tempo de confinamento a que me impus. Quer dizer que a comunidade foi abençoada com a eliminação da doença que abalou o mundo? Por que não avisaram antes? É impressão minha ou também aqui os números que medem a ameaça viral se estabilizaram no pico? Se tudo vai bem, por que os partícipes da cerimônia laudatória estavam afastados uns dos outros e se escondiam prudentemente atrás de máscaras?

Sem encontrar resposta, liguei a tevê e percebi que a ideia de que o mal foi eliminado não é exclusiva da aldeia onde moro, mas ganha espaço no imaginário coletivo, abafando a realidade das mortes que aumentam sem parar, milhares e diárias. Nas reportagens sobre a volta das partidas de futebol – a minha segunda estranheza–, é comum repórteres se referirem ao desempenho dos times na “pós-pandemia”. A expressão, inacreditável, convalida a política interesseira das autoridades do esporte, que promovem campeonatos em estádios vazios, ao lado de hospitais de campanha que abrigam vítimas do descaso oficial. Em plena e descontrolada crise sanitária.

Tenho dificuldade, a propósito, de compreender o que chamam de retorno das disputas. “O futebol é a coisa mais importante entre as coisas menos importantes”, diz a frase genial que não pertence nem a Nelson Rodrigues nem a Neném Prancha. Ela foi desmoralizada pela cartolagem. Chamar de futebol os jogos sem vida que se arrastam em gramados tristes, com torcedores de papelão acomodados nas arquibancadas, sons virtuais comandados por DJs e a potencialização dos horrores do VAR, é, para minha existência cansada e velha, um desaforo, um soco no estômago.  

Sigo recluso no meu quarto, no meu mundo, descolado de tudo. Se o “novo normal” é isso que meus olhos veem, prefiro continuar distante. Que seja. Beberei um trago longo de satisfação quando o pesadelo acabar. 

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