por Ricardo Araújo Pereira
A gente precisa mesmo tratar melhor os defuntos. Quando chegar a minha vez, já sei o que vão dizer: “Morreu. Deixa mulher e duas filhas”. Como assim, “deixa”? Há necessidade de ser desagradável nesta hora? “Deixa mulher e duas filhas.” Como se eu fosse uma criança que abandona o quarto desarrumado. Deixa mulher e duas filhas por aí espalhadas, uma para cada lado. Foi embora e deixa mulher e duas filhas, para os outros arrumarem. Além disso, é uma formulação que parece achar preferível que eu as levasse comigo. “Morreu. Mas ao menos levou a mulher e as duas filhas.” Acho que não faz sentido.
Outro problema é a gente não prestar atenção ao que uma pessoa diz, exceto quando ela está a morrer. Registramos com muita solenidade as últimas palavras de alguém, mesmo que tenhamos ignorado todas as palavras anteriores. Há livros com compilações de últimas palavras, mas talvez fosse interessante fazer uma antologia de penúltimas palavras. Talvez também sejam sábias. Porque é isso que se espera das últimas palavras: sabedoria, sensatez, uma iluminação especial na hora da morte. Como se a pessoa tivesse acumulado conhecimento ao longo da vida e, no último momento, estivesse finalmente capacitada para fazer um resumo da sua opinião sobre a existência.
Pensamentos expendidos 15 dias antes de morrer não contam. As duas semanas seguintes são fundamentais para compor o juízo do moribundo.
Acontece que, no meu caso, eu nunca fui sensato e continuo a achar da vida o que um banhista que está a ser violentamente sacudido pelas ondas acha da praia: ainda não vi bem, não tive dois minutos seguidos para olhar à volta, tomar notas e formar um parecer.
Portanto, conhecendo-me, as minhas últimas palavras não serão interessantes nem sábias. O máximo que eu posso fazer é torná-las misteriosas. Muito abertas à interpretação. Tenho pensado muito nisso. Decidi que vou tentar estar atento ao momento da morte e, quando ele chegar, digo: “O mais importante é nunca esquecer que”.
E pronto. Quem ficar irá gastar horas a tentar imaginar o que aquele moribundo queria dizer. Pelo menos até alguém se lembrar de que ele era um irresponsável —tanto assim é que deixa mulher e duas filhas.Ricardo Araújo Pereira
*Publicado na Folha de S.Paulo
Gostei do assunto de sua divulgação, gostaria de ver se é pertinente para meu site.
Sds.
Sou a Bruna de Souza, e quero parabenizar você pelo seu artigo escrito, muito bom vou acompanhar o seus artigos.