por Carlos Adriano, no Folhetim
“O Mez da Grippe”, colagem poética de variados materiais, ganha nova edição
[resumo] Um dos livros mais originais da literatura brasileira, “O Mez da Grippe”, lançado há 40 anos, ganha nova edição. Composta por uma colagem poética de recortes de jornais, fotografias, documentos e anúncios publicitários, obra de Valêncio Xavier retrata o impacto da gripe espanhola cem anos atrás e serve de alerta em tempos de pandemia do coronavírus.
É como se o próprio autor estivesse em um isolamento, não tão distante do atual —confinado ao esquecimento. Se o Brasil é “o país que a cada 15 anos esquece o que aconteceu nos últimos 15” (Ivan Lessa), não espanta que tenha caído no olvido um dos livros mais originais da literatura brasileira, escrito há quase 40 anos por um autor morto há 12.
Nas inúmeras reportagens a respeito de livros sobre pestes, tendo como pretexto a pandemia de Covid-19, nunca vi referência a “O Mez da Grippe”, de Valêncio Xavier (1933-2008), “novella” que trabalha a memória em sua própria matéria deletéria. Editada em 1981, a obra de espanto angariou a admiração do tradutor Boris Schnaiderman e do poeta Décio Pignatari. Felizmente, ganhou agora nova edição pela editora Arte & Letra.
A novela começa com a manchete de jornal: “A paz está interrompida”. E abaixo: “O presidente Wilson não trata com um governo que continua a cometer toda a sorte de crimes”. Se já de cara o leitor topa com tal inconveniência, não perde por esperar mais coincidências anacrônicas que surgirão nas páginas seguintes.
Não propriamente escrito, é um livro composto. Repartido em três seções-diários de 1918 —“Alguma Coisa” (outubro); “O Mez da Grippe” (novembro); “A Última Letra do Alfabeto” (dezembro)—, consiste na colagem vintage de recortes de jornais (Comércio do Paraná e Diário da Tarde), fotografias, documentos, versos musicais, anúncios de produtos sanitários, intervenções ficcionais e o depoimento de uma testemunha ocular da história: a gripe espanhola.
O autor paulistano radicado em Curitiba opera como tipógrafo, ao misturar episódios heterogêneos em livres associações: o avanço da epidemia; o impacto do fim da Primeira Guerra Mundial; o louco do Hospício Nossa Senhora da Luz que comete um lance macabro; o invasor de uma casa, que estupra a moradora contaminada; as lembranças de dona Lúcia, que, 58 anos depois, recorda sua sobrevivência.
Espalha-se pela trama a frase “um grito lancinante foi ouvido”, como metástase de um superego narrativo, expediente de expiação do trauma. A indeterminação do suspense novelesco é um dos tr(i)unfos da bricolagem do autor-rato de arquivos. A suspensão do sentido é natural à indefinição do destino: o que será depois o tal novo normal?
Há no livro um quê de colagem plástica (Braque, Schwitters, Max Ernst) e montagem cinematográfica —Eisenstein abre seu livro “A Forma do Filme” com o artigo “Palavra e Imagem”, díptico que poderia servir de epígrafe a “O Mez da Grippe”. Se convocar Bourriaud e sua teoria da arte como programa de pós-produção, fica fácil entender o autor desse livro-compósito como um reprocessador de dados do mundo contemporâneo.
Sob a égide dos catadores de Agnès Varda, a novela de Valêncio é um novelo de refugos (jornal de ontem embrulha o peixe de hoje, reza o ditado), documentos dessuetos em alfarrábios (cujo sinônimo pobre, aliás, é sebo). A forma desconjuntada da sutura brutalista solicita um leitor ativo. “O Mez da Grippe” é uma literatura literalmente feita de e nos interstícios (entre palavra e imagem, citação e artifício).
Abrigo do ambíguo, a lacuna deixa um lugar para o leitor se instalar com seus lapsos e anacolutos. A novela é feita do que a escola “com partido” de Frankfurt (Adorno, Horkheimer, Habermas, Marcuse, Benjamin) chamaria de cultura de massa. Na operação de Valêncio, a justaposição noticiária (“true news”) é exposta a uma espécie de efeito Kuleshov: a imagem do fato é a mesma, mas depende do contexto.
Como Orson Welles em “F for Fake” (“Verdades e Mentiras”), Valêncio embaralha as cartas verídicas e falsas em descompassos de mágica. O confronto entre exposição do fato e disposição da ficção escancara que tudo é discurso e pós-verdade. Como notou Hayden White, no século 18 havia a distinção entre estudo e escrita da história (o aspecto científico e o literário).
No século 19, ocorreu o cisma entre fato e ficção, e a imprensa refletiu-se na historiografia. No século 20, Tom Wolfe et caterva resgataram a voz do repórter. Sob a natureza forense do texto jornalístico, Valêncio joga o mito da objetividade contra o “minto” (ou “omito”) do sujeito. A apresentação dos fatos deriva em representação (interpretação, interpelação); o vírus do jornal vira matéria e matriz de criação.
Cacos da história são irrecuperáveis e ininteligíveis até que um historiador ou um artista lhes deem sentido, articulando-os pela ordem de alguma lógica. A rasura do “eu narrador” sob o “eu coletor” ratifica que a sentença se dá na coleção e no arranjo das peças. A reconstrução do passado se faz no imperioso domínio dos múltiplos sentidos do “Estranhamento” (Chklovski).
Em texto publicado no ano do nascimento de Valêncio, 1933, Benjamin demonstrou que a técnica (como produto do capitalismo) gera paupéria e degenera em perda o vivido. A cisão entre o humano (individual, coletivo) e a história (tradição, memória) indica a subtração de um elo e faz surgir “uma nova barbárie”, escreve em “Experiência e Pobreza”.1
Em testemunho de 1976, dona Lúcia lembra: “Os primeiros mortos tinham mortalha, eu mesma costurei algumas. Depois era de qualquer jeito, faltou até caixão”. Em outro: “Como saber quantos morreram? O governo não ia dizer o número verdadeiro dos mortos para não alarmar. Até hoje, ninguém sabe ao certo”. Em 2020, os vivos portam máscaras contra a morte.
E o “complexo da múmia” (André Bazin) atualizava-se perversamente. Na página de 1/12/1918, Valêncio estampou a rubrica “Vida Social”: “Os cinemas in totun abrirão amanhã, anunciando exibições novas de películas atraentes”. O esquecimento do passado implica um ato de barbárie (sorry, Adorno, por estropiar sua tese, mas a cláusula é justa). A perda da memória sequestra o que nos resta de humanidade.
Ao eleger como pauta a escória da informação que a sociedade do espetáculo descarta ou escamoteia, a novela-rébus de Valêncio Xavier alerta sobre a urgência de uma ecologia sustentável da verdade —e, por extensão, da vida. Até para que uma “gripezinha” de 1918 não retorne nem como tragédia nem como farsa (nem como hemorragia por hemorroida) —e muito menos como uma hecatombe sanitária e social, cem anos depois.